segunda-feira, 17 de setembro de 2018

LOBOS E CORDEIROS

(El Roto, El País)

(Só a poderosa vinheta de El Roto me faz escrever sobre um tema que me horroriza e relativamente ao qual não tinha conseguido até ao momento libertar-me do pudor de o analisar com alguma reflexão. A bem do escrutínio público, do qual nenhuma organização deve estar dispensada, a força da imagem superou o constrangimento.)

A inicialmente titubeante e depois firme tomada de posição do Papa Francisco revelou a coragem que faltava a uma certa Igreja para denunciar abusos e falta de escrutínio público de uma outra Igreja. São tempos e factos de uma memória distante, multicultural porque a Igreja Católica tem de facto uma dimensão mundial, que se projetam hoje no horizonte de revelações, de denúncias, de pedidos de desculpas e de confissão pública de pecadores. Apesar de alguns dos processos que se tornaram públicos assumirem dimensões inesperadas pela dimensão que apresentam em termos de número de agressores e vítimas envolvidos, compreendo que pode ser incómodo e injusto para quem se pautou sempre pelos valores da integridade e do respeito pelas crianças e jovens em geral. Mas a separação não é entre quem prevaricou sistematicamente e quem não o fez nunca. A distinção também se faz entre quem não tinha factos para denunciar situações e os que as ocultaram por jogo de poder, medo ou ameaças de qualquer tipo. Avaliando objetivamente situações reveladas e tornadas públicas e a dimensão que revestem, é práticamente impossível o assunto não ser do conhecimento de muita gente. Em questões desta natureza, quem oculta tem responsabilidades tão pesadas como quem prevarica na maior das impunidades e desrespeito pela integridade da educação de jovens e crianças.

Não conheço como é óbvio os contextos em que o sacerdócio é assumido e praticado em países como os EUA, a Alemanha, a Irlanda e outros países. Tenho por isso em relação a esses casos a maior das dificuldades em compreender a forma como tais perversidades são ocultadas pela instituição e pelas sociedades civis em que estão envolvidas. Mas já no que respeita ao caso português, e por muito que custe a gente militante e católica que está obviamente fora destes problemas e sem responsabilidade nos mesmos, a questão teve maturação num contexto de pobreza, de obscurantismo, de subdesenvolvimento generalizado do qual a Igreja fez parte e não se demarcou com suficiente expressividade.

Tenho o máximo respeito e admiração pela personalidade do Padre Anselmo Borges e ninguém com mais autoridade de pensamento para não hesitar em relacionar esta perversidade desrespeitadora da integridade pessoal de crianças e jovens com o tão discutido celibato dos padres. Entendendo o acosso a crianças e jovens como um desvio de comportamento, a associação do celibato a essas práticas é ainda mais ofensiva para a Igreja. Sugere que o celibato é potenciador de uma má sanidade mental para os seus representantes e isso é francamente comprometedor para a mensagem da Igreja junto dos fiéis.

Tendo a analisar estas questões pelo prisma do poder e dos seus contextos. O melhor indicador de que estou certo nessa orientação foi a tentativa de uma certa Igreja de envolver o Padre Francisco na matéria, acusando-o de cumplicidade. Nada de mais transparente e cristalino, bastante mais transparente e cristalino do que a tentativa da instituição de apagar dos registos e do escrutínio os desvios comportamentais dos seus principais agentes.

Comparado com esta ocultação das perversidades agora tornadas públicas, aquelas histórias populares de alguns curas com muitos sobrinhos e governantas dedicadas que atravessaram o imaginário anticlerical português são uma verdadeira brincadeira.

Os lobos já tinham descido aos povoados, simplesmente não o sabíamos.

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