terça-feira, 11 de setembro de 2018

POPULISMO, CHINA E GLOBALIZAÇÃO



(Temos vindo neste blogue a dedicar alguma atenção aos fatores materiais do avanço do populismo. Não poderíamos como é óbvio ignorar o efeito-China. Mas convém que o efeito seja analisado de mente aberta e sem ideias formadas, não ignorando a história da economia mundial e os tempos da globalização.)

Não é novidade que a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 revolucionou a economia e o comércio mundiais. Não se tratava de abrir a porta a um parceiro qualquer. Vários motivos aconselhavam a um TAC ou ressonância magnética e não a um simples raio X do candidato. Primeiro, a China constitui um exemplo atípico de agressividade comercial externa no seio de uma gestão política e económica interna com elevado poder de autoritarismo e de poder de enforcement de decisões tomadas. Dificilmente poderemos encontrar uma economia com um poder tão elevado de vinculação e de cumprimento de decisões de política. Segundo, a China apresentava-se no comércio internacional com um verdadeiro exército de reserva de mão-de-obra barata e relativamente desqualificada, em condições que Marx descreveria como favoráveis à extração de mais-valia absoluta do trabalho. Terceiro, essa entrada na OMC é em parte precedida mas também posteriormente completada com um outro exército, a diáspora chinesa, provavelmente uma das primeiras tribos globais, abrindo pioneiramente caminho à entrada de produtos chineses nos mercados das economias maduras. Quarto, por razões de história milenária, trata-se de uma sociedade que, apesar do modelo comunista, não deixou nunca morrer a cultura empresarial.

Recordo-me que, na altura, não é que estas questões fossem ignoradas. Simplesmente, os juízos reservados e as cautelas que muito boa gente (se não fora por outro motivo por motivos reativos e de defesa de posições estabelecidas no comércio internacional) colocaram foram submergidos pela outra tentação que os países mais poderosos alimentavam: a conquista do poderoso mercado interno chinês, em termos de consumo e de plataformas de absorção de investimento direto estrangeiro a partir do ocidente, projetado sobretudo a partir de cenários de enriquecimento médio da sociedade chinesa, com o aumento sustentado do seu rendimento per capita. E, se quisermos ser rigorosos, um outro argumento de base política ajudou a abrir as portas ao parceiro. Pensou-se, então, que a formação de uma classe média chinesa ditada pelo enriquecimento médio da sociedade chinesa em contexto de economia global criaria as forças endógenas para que o comunismo fosse erradicado e desse lugar a um regime mais aberto. Sabemos hoje que esse enriquecimento aconteceu, não é ainda claro se emergirá uma classe média com poder de transformação a partir de dentro e seguramente o regime manteve-se fiel ao seu autoritarismo. Sabemos ainda que esse enriquecimento incomodou o regime por outros motivos. Deu origem a fenómenos de riqueza ostentatória e de corrupção demasiado visíveis para que o regime ficasse indiferente. Ou seja, vista desse modo, a evolução da economia chinesa revelou o que aconteceu nas economias maduras. O aprofundamento da globalização trouxe o agravamento da desigualdade da distribuição do rendimento.

Sobretudo, a partir do início do novo milénio, e com epicentro na economia americana, a penetração da China nos mercados ocidentais começou a despertar um novo foco de atenção política. O peso das importações chinesas em algumas economias passou a ser associado ao comportamento do emprego dessas economias, ao declínio industrial e por conseguinte aos focos de descontentamento quanto aos efeitos da globalização que o populismo de Trump haveria de cavalgar com êxito pelo menos nos Estados atingidos em força pelo declínio do emprego industrial. Claro que as importações chinesas se limitam a ocupar um espaço de mercado potenciado pela desigualdade na distribuição do rendimento. Com alguma graça e sempre que lá em casa anuncio que vou ao Corte Inglês fazer compras, a nossa empregada afirma que também ela e as amigas compram vestuário no “seu” Corte Inglês, afinal os grandes armazéns chineses de muita coisa entre as quais vestuário que por aí existem, também na minha área de residência. A nossa empregada não tem formação em economia mas tem a clara perceção que as importações chinesas se limitaram a preencher um segmento de mercado ditado pela distribuição do rendimento com claro benefício para esse tipo de consumidores, que até podem ter perdido o emprego industrial que tinham.

Se quisermos seguir a via das análises mais rigorosas, os economistas costumam seguir o problema através de um indicador muito simples, o peso que as importações chinesas representam no valor acrescentado de cada setor industrial. Os economistas recorrem ainda a um outro elemento de observação, não tão popular porque os resultados não permitem corroborar que vem aí a grande ameaça chinesa. Trata-se de medir o efeito da concorrência chinesa nos mercados de exportação. Assim, se por exemplo quisermos medir a concorrência que a China faz a Portugal no mercado alemão, teríamos por produto ou setor de exportação calcular o peso das exportações chinesas para a Alemanha em relação ao valor das exportações portuguesas para a Alemanha. Para medir a concorrência global, bastaria analisar diferentes mercados de exportação e ponderar pelo peso que esse mercado apresenta para as exportações totais portuguesas.

Os economistas Stefan Thewissen e Olaf van Vliet (links aqui e aqui) calcularam esses indicadores para um conjunto de países e setores OCDE (veja-se o gráfico que abre este post). Entre 1990 e 2007, a exposição OCDE às importações chinesas aumentou consideravelmente, ultrapassando já os 20%. Já no que toca à concorrência nos mercados externos, essa exposição é negativa mas está a transformar-se em valores cada vez menos negativos, o que significa que está a aumentar de modo relevante.

Mas, como já o assinalámos, esta questão só se torna relevante para frutificar o discurso populista quando é feita a associação ao declínio do emprego industrial. Sem espaço neste post para uma mais completa digressão sobre esta componente, o que podemos adiantar é que os efeitos mais sensíveis têm sido identificados nos empregos de mais baixa qualificação, reduzindo quer empregos, quer reduzindo horas de trabalho desse tipo de trabalhadores.

Onde há fumo há probabilidade de fogo e o discurso populista sabe-o melhor do que ninguém, porque de situações incendiárias sabe ele. Mas a associação da exposição dos mercados das economias maduras ao declínio do emprego mais qualificado não está isenta de interrogações, as quais obviamente ficam longe das preocupações populistas. Venderão essas precisões de análise como invenções das elites económicas e a imprensa quotidiana faz-lhes a vontade não dedicando qualquer atenção a essas interrogações.

Primeiro, há que ter em conta que a perda de empregos de baixa qualificação é também o resultado da marcha inexorável do progresso tecnológico. Este tem um pecado original, o “skill-bias”, tendendo sempre a favorecer a procura de empregos mais qualificados. Não consta que o populismo de hoje se transforme em movimentos “luditas” de destruição de máquinas e de gadgets tecnológicos.

Segundo, essas perdas de emprego podem ser substancialmente atenuadas pela ativação de políticas sociais focadas na minimização dos efeitos dessas perdas. É tudo uma questão de vontade política e podem inclusivamente ser implementadas políticas preventivas e não apenas de apagar fogos quando eles deflagram.

Terceiro, a história do desenvolvimento do capitalismo não é senão uma transformação permanente e progressiva de perda de emprego em setores de maior desqualificação e ganhos em setores de maior qualificação média.

Quarto, o comércio internacional sempre se alargou através de sucessivas vagas de entradas de países que se apresentam com baixos salários de partida, substituindo vagas anteriores que entretanto foram paulatina e progressivamente aumentando os seus salários médios nos produtos de exportação.

Por isso me parece que mais do que impostos aduaneiros às importações chinesas é fundamental vigiar internacionalmente as condições de trabalho e de baixos salários.

Estou no fim da crónica e recordo-me no tempo passado de uma crónica deliciosa de António Barreto em que ele dizia que só nas lojas de chineses encontrava um produto fundamental para os seus copos de vinho, o escovilhão. E também fico a maturar com os meus botões como é que haveria de explicar à minha empregada que ela deixaria de poder frequentar o seu Corte Inglês para comprar vestuário por força dos direitos aduaneiros às importações de produtos chineses.

Nota final (para os mais puristas e interessados)

O artigo seminal nesta matéria continua ser sem sombra de dúvida: Autor, Dorn e Hanson (2013), “The China Syndrome: Local Market Effects of Import Competition in the United States”, American Economic Review, volume 103, nº 6: pp. 2121-2168-

A propósito, David Autor esteve ou está em Portugal para a Conferência da Fundação Francisco Manuel dos Santos e deu uma excelente entrevista ao Observador (link aqui).

Sem comentários:

Enviar um comentário