(Temos vindo neste blogue a dedicar alguma atenção aos
fatores materiais do avanço do populismo. Não poderíamos como é óbvio ignorar o
efeito-China. Mas
convém que o efeito seja analisado de mente aberta e sem ideias formadas, não
ignorando a história da economia mundial e os tempos da globalização.)
Não é
novidade que a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em
2001 revolucionou a economia e o comércio mundiais. Não se tratava de abrir a
porta a um parceiro qualquer. Vários motivos aconselhavam a um TAC ou
ressonância magnética e não a um simples raio X do candidato. Primeiro, a China
constitui um exemplo atípico de agressividade comercial externa no seio de uma
gestão política e económica interna com elevado poder de autoritarismo e de
poder de enforcement de decisões
tomadas. Dificilmente poderemos encontrar uma economia com um poder tão elevado
de vinculação e de cumprimento de decisões de política. Segundo, a China
apresentava-se no comércio internacional com um verdadeiro exército de reserva
de mão-de-obra barata e relativamente desqualificada, em condições que Marx
descreveria como favoráveis à extração de mais-valia absoluta do trabalho.
Terceiro, essa entrada na OMC é em parte precedida mas também posteriormente
completada com um outro exército, a diáspora chinesa, provavelmente uma das
primeiras tribos globais, abrindo pioneiramente caminho à entrada de produtos
chineses nos mercados das economias maduras. Quarto, por razões de história
milenária, trata-se de uma sociedade que, apesar do modelo comunista, não
deixou nunca morrer a cultura empresarial.
Recordo-me
que, na altura, não é que estas questões fossem ignoradas. Simplesmente, os
juízos reservados e as cautelas que muito boa gente (se não fora por outro
motivo por motivos reativos e de defesa de posições estabelecidas no comércio
internacional) colocaram foram submergidos pela outra tentação que os países
mais poderosos alimentavam: a conquista do poderoso mercado interno chinês, em
termos de consumo e de plataformas de absorção de investimento direto
estrangeiro a partir do ocidente, projetado sobretudo a partir de cenários de
enriquecimento médio da sociedade chinesa, com o aumento sustentado do seu
rendimento per capita. E, se
quisermos ser rigorosos, um outro argumento de base política ajudou a abrir as
portas ao parceiro. Pensou-se, então, que a formação de uma classe média
chinesa ditada pelo enriquecimento médio da sociedade chinesa em contexto de
economia global criaria as forças endógenas para que o comunismo fosse
erradicado e desse lugar a um regime mais aberto. Sabemos hoje que esse
enriquecimento aconteceu, não é ainda claro se emergirá uma classe média com
poder de transformação a partir de dentro e seguramente o regime manteve-se
fiel ao seu autoritarismo. Sabemos ainda que esse enriquecimento incomodou o
regime por outros motivos. Deu origem a fenómenos de riqueza ostentatória e de
corrupção demasiado visíveis para que o regime ficasse indiferente. Ou seja,
vista desse modo, a evolução da economia chinesa revelou o que aconteceu nas
economias maduras. O aprofundamento da globalização trouxe o agravamento da
desigualdade da distribuição do rendimento.
Sobretudo, a
partir do início do novo milénio, e com epicentro na economia americana, a
penetração da China nos mercados ocidentais começou a despertar um novo foco de
atenção política. O peso das importações chinesas em algumas economias passou a
ser associado ao comportamento do emprego dessas economias, ao declínio industrial
e por conseguinte aos focos de descontentamento quanto aos efeitos da
globalização que o populismo de Trump haveria de cavalgar com êxito pelo menos
nos Estados atingidos em força pelo declínio do emprego industrial. Claro que
as importações chinesas se limitam a ocupar um espaço de mercado potenciado
pela desigualdade na distribuição do rendimento. Com alguma graça e sempre que
lá em casa anuncio que vou ao Corte Inglês fazer compras, a nossa empregada
afirma que também ela e as amigas compram vestuário no “seu” Corte Inglês,
afinal os grandes armazéns chineses de muita coisa entre as quais vestuário que
por aí existem, também na minha área de residência. A nossa empregada não tem
formação em economia mas tem a clara perceção que as importações chinesas se
limitaram a preencher um segmento de mercado ditado pela distribuição do
rendimento com claro benefício para esse tipo de consumidores, que até podem
ter perdido o emprego industrial que tinham.
Se quisermos
seguir a via das análises mais rigorosas, os economistas costumam seguir o
problema através de um indicador muito simples, o peso que as importações
chinesas representam no valor acrescentado de cada setor industrial. Os
economistas recorrem ainda a um outro elemento de observação, não tão popular
porque os resultados não permitem corroborar que vem aí a grande ameaça
chinesa. Trata-se de medir o efeito da concorrência chinesa nos mercados de
exportação. Assim, se por exemplo quisermos medir a concorrência que a China
faz a Portugal no mercado alemão, teríamos por produto ou setor de exportação
calcular o peso das exportações chinesas para a Alemanha em relação ao valor
das exportações portuguesas para a Alemanha. Para medir a concorrência global,
bastaria analisar diferentes mercados de exportação e ponderar pelo peso que
esse mercado apresenta para as exportações totais portuguesas.
Os
economistas Stefan Thewissen e Olaf van Vliet (links aqui e aqui) calcularam
esses indicadores para um conjunto de países e setores OCDE (veja-se o gráfico
que abre este post). Entre 1990 e 2007, a exposição OCDE às importações
chinesas aumentou consideravelmente, ultrapassando já os 20%. Já no que toca à
concorrência nos mercados externos, essa exposição é negativa mas está a
transformar-se em valores cada vez menos negativos, o que significa que está a
aumentar de modo relevante.
Mas, como já
o assinalámos, esta questão só se torna relevante para frutificar o discurso
populista quando é feita a associação ao declínio do emprego industrial. Sem
espaço neste post para uma mais
completa digressão sobre esta componente, o que podemos adiantar é que os
efeitos mais sensíveis têm sido identificados nos empregos de mais baixa
qualificação, reduzindo quer empregos, quer reduzindo horas de trabalho desse
tipo de trabalhadores.
Onde há fumo
há probabilidade de fogo e o discurso populista sabe-o melhor do que ninguém,
porque de situações incendiárias sabe ele. Mas a associação da exposição dos
mercados das economias maduras ao declínio do emprego mais qualificado não está
isenta de interrogações, as quais obviamente ficam longe das preocupações
populistas. Venderão essas precisões de análise como invenções das elites
económicas e a imprensa quotidiana faz-lhes a vontade não dedicando qualquer
atenção a essas interrogações.
Primeiro, há que ter
em conta que a perda de empregos de baixa qualificação é também o resultado da
marcha inexorável do progresso tecnológico. Este tem um pecado original, o “skill-bias”, tendendo sempre a favorecer
a procura de empregos mais qualificados. Não consta que o populismo de hoje se
transforme em movimentos “luditas” de
destruição de máquinas e de gadgets
tecnológicos.
Segundo, essas
perdas de emprego podem ser substancialmente atenuadas pela ativação de
políticas sociais focadas na minimização dos efeitos dessas perdas. É tudo uma
questão de vontade política e podem inclusivamente ser implementadas políticas
preventivas e não apenas de apagar fogos quando eles deflagram.
Terceiro, a história
do desenvolvimento do capitalismo não é senão uma transformação permanente e
progressiva de perda de emprego em setores de maior desqualificação e ganhos em
setores de maior qualificação média.
Quarto, o comércio
internacional sempre se alargou através de sucessivas vagas de entradas de
países que se apresentam com baixos salários de partida, substituindo vagas
anteriores que entretanto foram paulatina e progressivamente aumentando os seus
salários médios nos produtos de exportação.
Por isso me
parece que mais do que impostos aduaneiros às importações chinesas é
fundamental vigiar internacionalmente as condições de trabalho e de baixos
salários.
Estou no fim
da crónica e recordo-me no tempo passado de uma crónica deliciosa de António
Barreto em que ele dizia que só nas lojas de chineses encontrava um produto
fundamental para os seus copos de vinho, o escovilhão. E também fico a maturar
com os meus botões como é que haveria de explicar à minha empregada
que ela deixaria de poder frequentar o seu Corte Inglês para comprar vestuário
por força dos direitos aduaneiros às importações de produtos chineses.
Nota final (para os mais
puristas e interessados)
O artigo
seminal nesta matéria continua ser sem sombra de dúvida: Autor, Dorn e Hanson
(2013), “The China Syndrome: Local Market Effects of
Import Competition in the United States”, American Economic
Review, volume 103, nº 6: pp. 2121-2168-
A propósito,
David Autor esteve ou está em Portugal para a Conferência da Fundação Francisco
Manuel dos Santos e deu uma excelente entrevista ao Observador (link aqui).
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