terça-feira, 4 de setembro de 2018

MEMÓRIA HISTÓRICA E CPLP



(O meu colega de blogue já se referiu e bem à tragédia da perda de património cultural que a destruição do Museu Nacional do Brasil no Rio de Janeiro representa, sobretudo do ponto de vista do que ela representa de incúria pela preservação da memória histórica. Queria apenas acrescentar um outro ponto de vista que tem vindo a ser gerado na minha acumulação de reflexões por este e por outros motivos e que pode traduzir-se neste desabafo: mas que raio anda a fazer a CPLP? Justifica-se a sua existência com esta inépcia para gerar algo de válido e que se veja?)

Ponto de partida assumido para esta reflexão: no incêndio que provocou a quase total destruição do Museu Nacional do Brasil há seguramente incúria na alocação de meios de conservação e segurança e daí os protestos que foram observados após a deflagração. Incúria obviamente imputável ao governo brasileiro.

A pergunta óbvia é a seguinte: o que tem isto a ver com a minha deceção com a CPLP e o seu projeto?

Aparentemente não tem. Poderíamos zurzir a bom zurzir no governo brasileiro mais interessado em agradar às suas clientelas (enchendo-lhes os bolsos) e suspender os ganhos de distribuição e na luta contra a pobreza que a esquerda brasileira (impura, já sabemos) tinha conseguido do que propriamente em fazer da preservação do património e da memória histórica a sua bandeira.

Mas quando se fala em perda trágica de património e de memória isso envolve necessariamente os portugueses e alguns elementos comuns aos povos representados na CPLP. Como é óbvio, não estou a querer afirmar que uma CPLP mais consistente teria evitado o incêndio do Museu Nacional do Brasil. Nós por cá também partilhamos a incúria de que falámos e, mais dia menos dia, teremos também por cá dissabores. Basta pensar por exemplo no abandono a que o património cultural religioso está votado.

Mas na sequência de outros testemunhos que vou recebendo, já que não conheço fisicamente nenhum país CPLP para além de Portugal, vem-se-me formando uma reflexão sobre o alcance efetivo de uma organização ou associação como a CPLP. Sei que não vou ser politicamente correto e que posso ofender a sensibilidade dos mais puristas da lusofonia.

Há dias, amigos meus que visitaram recentemente S. Tomé e Príncipe em turismo vieram chocados com a pobreza estrutural do país e com o estado endémico futuro de tal pobreza. Perguntei-me na altura o que é que a CPLP tem que ver com esta realidade trágica do subdesenvolvimento em tempos em que o número de países que têm escapado a essa trajetória começa a ser relevante. Mas poderíamos também falar da desagregação como país da Guiné Bissau, enredada nos mecanismos da droga e do tráfico. Ou da insegurança vivida em certas partes do território moçambicano.

A indefinição estratégica da CPLP é confrangedora. Em meu entender, o respeito pela situação política de cada país e a necessidade de não haver introsão na soberania de cada um não explica tudo. É um facto também que a memória da relação colonizador-colonizado não é fácil de gerir e basta pensar na controvérsia em torno do tema descobrimentos ou descobertas para compreender que estamos a pisar terreno movediço senão minado. Por mais capacidade e adaptação que Portugal tenha revelado em receber os descolonizados há sempre memórias sensíveis e só na vigência de novas gerações podem ser ultrapassadas, a não ser que a arrogância volte a dominar as relações entre os países. É claro também que o desenvolvimento desigual no seu seio, com o Brasil e Angola a quererem trilhar lógicas próprias de internacionalização representa uma perturbação adicional.

A oscilação de objetos é demasiado evidente para não ser sentida como expressão de ausência de rumo. Será a CPLP um espaço de livre circulação de pessoas e trabalhadores falando o português apesar do acordo ortográfico? Estão os países cientes neste modelo dos riscos de fluxos consideráveis de população com origem nos países mais pobres? Não poderia a CPLP ser alternativamente uma frente lusófona de combate às formas de subdesenvolvimento mais endémico, mobilizando e canalizando financiamento e ajuda pública internacional para esse efeito? E a defesa da língua tem pernas para andar? E a defesa do património histórico-cultural, com o compromisso de cada país salvaguardar “joias da coroa” em termos de património lusófono comum, não enjeitando as interrogações e as dúvidas da história, não poderia ser um objeto credível para o qual valesse a pena reunir recursos escassos? Não poderiam os sistemas científicos e de saúde ser os motores de uma nova CPLP ou será que a nossa comunidade científica se sentirá desvalorizada?

Fica-se com a sensação de que bem pode o Presidente Marcelo esgotar-se na diplomacia dos afetos CPLP e mergulhar onde bem lhe apeteça em termos de mares da lusofonia que nada apagará a imagem de instituição agonizante e sem objetivos claros e percebidos como socialmente úteis pela comunidade que fala o português nas suas diferentes sintaxes e musicalidades. Será que teimamos em afirmar liderança onde ela não existe, consentida por conveniência mas não respeitada na prática? Será que continuamos a revelar a nossa incapacidade de compreender a real pequenez da dimensão que temos, reconduzidos ao retângulo e ilhas e vendidos que estão, para gerar fundos para o resgate, alguns dos anéis mais preciosos?

A destruição provocada pelo fogo, qualquer que ela seja, mais ou menos relevante, tem o condão de exacerbar o meu pessimismo. Mas neste caso, mesmo esgaravatando com afinco e esforço, não vejo à distância algo de efetivo que justifique a esperança na CPLP.

Desculpem o desabafo.

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