quarta-feira, 3 de setembro de 2014

BLOCO/ESQUERDA VS. SYRIZA/RENA


Confesso que foi de puro dó o sentimento que de mim se apoderou ao ver as festivas imagens televisivas do “Fórum Socialismo 2014” que o Bloco de Esquerda (BE) organizou durante o fim de semana em Évora. Porque custa ver alguma gente decente, bem intencionada, capaz e determinada – como João Semedo, José Manuel Pureza, Mariana Mortágua ou José Soeiro, para só citar alguns – a participar quase inconscientemente no enterro em direto de um projeto que talvez pudesse ter chegado a outro desfecho.

E cá voltamos à estafada mas candente questão das relações entre a esquerda dita à esquerda do PS e o exercício do poder. Pois nem de propósito, foi esta Segunda-Feira que o role model que o BE tanto promoveu – os seus pares do Syriza grego, liderados por Alexis Tsipras – entrou em funções efetivas à cabeça da maior região do país, a Ática que abarca a cidade de Atenas. Na presidência uma mulher de 39 anos (Irene-Rena Dourou) – a mesma que há tempos foi alvo de agressão durante um debate televisivo por parte de um representante da extrema-direita, a mesma que um dia assumiu que a sua condição de loura em nada limitaria a sua intervenção política (“vou ficar assim até me tornar grisalha”) – que vencera renhidamente (50,83%) as eleições de 25 de maio contra o anterior presidente da região (um socialista apoiado por Samaras).

Rena corporiza assim a primeira vez do Syriza, governativamente falando como resulta óbvio, e é esse o dado que aqui quero relevar na medida em que vamos então ter ao nosso alcance um caso em que a esquerda mais radical cede à tentação de “sujar as mãos”, e logo para gerir uma região de marcada significância económica e política. A principal protagonista – não é ainda claro se por caraterísticas pessoais próprias, se por ser mulher, se por opção de tática política ou por um pouco de tudo isso – tem surgido relativamente cautelosa em termos de discurso.

Algumas ilustrações, citando a própria. Na noite eleitoral declarou: “A difícil via que se abre diante de nós é a da responsabilidade e não a do poder, e o dever deste novo conselho regional é servir o crescimento”. Explicou-se entretanto mais aprofundadamente: “A esquerda não pode não intervir. Nós devemos assumir as nossas responsabilidades: quando o teu país cai aos bocados, tu não podes ficar a ver. É teu dever sujar as mãos e fazer face à realidade.” Sobre o que será o seu exercício adiantou: “Vou trabalhar respeitando os meus valores de esquerda mas, à cabeça da região, devo ser pragmática”. Acrescentando: “Nunca prometi que ia resolver o desemprego. Disse que ia tentar afetar os fundos europeus a projetos que não agravem o desemprego.” E ainda: “Sei que este discurso pouco romântico desestabilizou uma parte da minha formação, mas eu trabalhei treze anos no privado e sou uma realista.”

A coisa promete, portanto. E merecerá seguramente a maior das atenções, seja no respeitante ao que será a prática concreta de uma gestão governativa à esquerda que se habituou a recusar o sistema seja quanto às medidas alternativas concretas que dela possam vir a brotar num quadro ainda dominado pelos traumas provocados pela terrível ação da amiga Troika. Dito isto, não posso deixar de também confessar a minha enorme dificuldade em reconhecer a existência de alguém que, em Portugal e situando-se no interior desta área política sem estar “manchado” pelos erros do BE (Rui Tavares, Daniel Oliveira e outros que me perdoem), possa reunir em simultâneo os imprescindíveis atributos de carisma, maturidade, competência e humildade para se inspirar em Rena e fazer a desejável diferença...

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