domingo, 7 de setembro de 2014

PERPLEXOS, MAS NÃO IMPUNES



O processo Face Oculta produziu condenações, variadas e em grande número, e inicia agora a não menos complexa fase de alegações por parte dos representantes advogados da totalidade dos condenados, que entre outras coisas será um teste à eficácia das mudanças entretanto operadas em matéria de legislação processual. Persiste a incógnita de saber quantas das condenações agora produzidas vão permanecer efetivas até ao último dos recursos possíveis.
De todo o aparato que a decisão do Tribunal de Aveiro determinou, a imagem ou registo que se me gravou na memória foi a das declarações de alguns dos agora condenados ou dos seus representantes, talvez com maior expressão nas declarações de Armando Vara. A perplexidade de Vara é manifesta, o próprio fala de choque, mas a afirmação mais importante e valiosa como documento histórico é a referência à sua sensação de que terá sido condenado por ser quem é, no seu contexto de homem político e presume-se que das suas palavras estaria implícita a ideia de homem político feito a pulso, vindo do recôndito Trás-os-Montes. Daí as minhas palavras de perplexidade e não impunidade.
Vasco Pulido Valente (VPV) na sua crónica de hoje no Público sugere que o contexto político e social em que o país vive, de expropriações de rendimento dirigidos a dois grupos sociais bem determinados, pensionistas e funcionários públicos, e simultaneamente em plena revelação de malfeitorias dos mais poderosos, terá pesado na não benevolência dos juízos e na mão forte de determinação das penas de factos provados pela investigação judicial. Esta tese é sugestiva, sobretudo porque VPV vai ao ponto de sustentar que essa pressão social sobre a bondade de aplicação de penas a estes casos pode contrabalançar o engenho e criatividade de advogados competentes e ladinos, tão à vontade nos rodriguinhos jurídicos, capazes de protelar a consumação das penas.
O tema da pressão social sobre a justiça pode ser, a meu ver, visto em dois planos: o da perversidade de poder comprometer o respeito pela lei e o da pressão socialmente contextualizada que, não colocando em risco a proteção do cidadão, possa influenciar a interpretação dessa lei para, com provas evidenciadas, fixar penas para os ilícitos criminais praticados e demonstrados. É um tema importante de investigação jurídica saber se a jurisprudência nos tribunais é sensível ao contexto de pressão social que determinadas conjunturas sociais podem provocar, internalizada pelos juízes. Em contextos em que a classe política está no grau mais baixo da valoração social desde há muito tempo e em que a raiva contra poderosos está também no auge, os riscos da judicialização da vida política e da vida social são perversos para a democracia e há uma linha ténue de demarcação que deve ser mantida. Mas negar ou ignorar que os juízes não são imunes à pressão social para o exercício da justiça em termos pedagógicos neste tipo de contextos como o que hoje vivemos, com as tais penas exemplares, é puro irrealismo.
A perplexidade de Vara e eventualmente de outros agentes agora condenados prende-se com uma outra perversidade, que essa sim está muito enraizada em alguma classe política. A perversidade está na forma quase natural como alguns desses agentes fizeram as suas “vidinhas”, capturando o seu exercício de cargos públicos para a sua própria afirmação, política sem locupletamento material ou de enriquecimento ilícito. Há mesmo entre alguns destes agentes os que se sentem dotados de um poder especial, regra geral proporcional às redes de contactos dos seus telemóveis, que consistiria numa espécie de poder de desbloqueamento das por si consideradas ineficiências do Estado. Quando alguém questiona este poder e esta auréola e esse questionar chega com resultados à justiça, a perplexidade é grande, porque tudo se passa porque algo de considerado natural é posto em causa. E quando do outro lado das chamadas telefónicas de tão providenciais máquinas de desenrascar situações difíceis estão sucateiros Godinho que, pródigos no apoio às suas obras sociais e protetorados locais, perceberam o poder e a recetividade desses homens, a cumplicidade social torna-se quase natural.
Tudo isto acontece num contexto cultural em que a “accountability” do uso de recursos públicos simplesmente não existe no quadro comportamental espontâneo dos agentes públicos. O Estado foi sempre de um modo ou outro instrumental de estratégias individuais ou empresariais de organização de “vidinhas”. Perplexos mas não impunes, os agora condenados e afadigados em perscrutar no acórdão de Aveiro a mais pequena falha talvez tenham tido o azar de ser julgados na presente conjuntura política e social. Mas não me choca que a história nos proporcione uma condenação “exemplar”, sobretudo se essa condenação puder contribuir para uma mais saudável delimitação do público e do privado em Portugal.

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