O processo Face Oculta produziu condenações,
variadas e em grande número, e inicia agora a não menos complexa fase de alegações
por parte dos representantes advogados da totalidade dos condenados, que entre
outras coisas será um teste à eficácia das mudanças entretanto operadas em matéria
de legislação processual. Persiste a incógnita de saber quantas das condenações
agora produzidas vão permanecer efetivas até ao último dos recursos possíveis.
De todo o aparato que a decisão do Tribunal de
Aveiro determinou, a imagem ou registo que se me gravou na memória foi a das
declarações de alguns dos agora condenados ou dos seus representantes, talvez
com maior expressão nas declarações de Armando Vara. A perplexidade de Vara é
manifesta, o próprio fala de choque, mas a afirmação mais importante e valiosa
como documento histórico é a referência à sua sensação de que terá sido
condenado por ser quem é, no seu contexto de homem político e presume-se que
das suas palavras estaria implícita a ideia de homem político feito a pulso,
vindo do recôndito Trás-os-Montes. Daí as minhas palavras de perplexidade e não
impunidade.
Vasco Pulido Valente (VPV) na sua crónica de hoje
no Público sugere que o contexto político e social em que o país vive, de
expropriações de rendimento dirigidos a dois grupos sociais bem determinados,
pensionistas e funcionários públicos, e simultaneamente em plena revelação de
malfeitorias dos mais poderosos, terá pesado na não benevolência dos juízos e
na mão forte de determinação das penas de factos provados pela investigação
judicial. Esta tese é sugestiva, sobretudo porque VPV vai ao ponto de sustentar
que essa pressão social sobre a bondade de aplicação de penas a estes casos
pode contrabalançar o engenho e criatividade de advogados competentes e ladinos,
tão à vontade nos rodriguinhos jurídicos, capazes de protelar a consumação das
penas.
O tema da pressão social sobre a justiça pode ser,
a meu ver, visto em dois planos: o da perversidade de poder comprometer o
respeito pela lei e o da pressão socialmente contextualizada que, não colocando
em risco a proteção do cidadão, possa influenciar a interpretação dessa lei
para, com provas evidenciadas, fixar penas para os ilícitos criminais
praticados e demonstrados. É um tema importante de investigação jurídica saber
se a jurisprudência nos tribunais é sensível ao contexto de pressão social que
determinadas conjunturas sociais podem provocar, internalizada pelos juízes. Em
contextos em que a classe política está no grau mais baixo da valoração social desde
há muito tempo e em que a raiva contra poderosos está também no auge, os riscos
da judicialização da vida política e da vida social são perversos para a
democracia e há uma linha ténue de demarcação que deve ser mantida. Mas negar
ou ignorar que os juízes não são imunes à pressão social para o exercício da
justiça em termos pedagógicos neste tipo de contextos como o que hoje vivemos,
com as tais penas exemplares, é puro irrealismo.
A perplexidade de Vara e eventualmente de outros
agentes agora condenados prende-se com uma outra perversidade, que essa sim está
muito enraizada em alguma classe política. A perversidade está na forma quase
natural como alguns desses agentes fizeram as suas “vidinhas”, capturando o seu
exercício de cargos públicos para a sua própria afirmação, política sem
locupletamento material ou de enriquecimento ilícito. Há mesmo entre alguns
destes agentes os que se sentem dotados de um poder especial, regra geral
proporcional às redes de contactos dos seus telemóveis, que consistiria numa
espécie de poder de desbloqueamento das por si consideradas ineficiências do
Estado. Quando alguém questiona este poder e esta auréola e esse questionar
chega com resultados à justiça, a perplexidade é grande, porque tudo se passa porque algo de considerado natural é posto em causa. E quando do outro lado das
chamadas telefónicas de tão providenciais máquinas de desenrascar situações difíceis
estão sucateiros Godinho que, pródigos no apoio às suas obras sociais e
protetorados locais, perceberam o poder e a recetividade desses homens, a
cumplicidade social torna-se quase natural.
Tudo isto acontece num contexto cultural em que a
“accountability” do uso de recursos públicos
simplesmente não existe no quadro comportamental espontâneo dos agentes públicos.
O Estado foi sempre de um modo ou outro instrumental de estratégias individuais
ou empresariais de organização de “vidinhas”. Perplexos mas não impunes, os
agora condenados e afadigados em perscrutar no acórdão de Aveiro a mais pequena
falha talvez tenham tido o azar de ser julgados na presente conjuntura política
e social. Mas não me choca que a história nos proporcione uma condenação “exemplar”,
sobretudo se essa condenação puder contribuir para uma mais saudável delimitação
do público e do privado em Portugal.
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