sábado, 8 de novembro de 2014

A FINURA DE ESPÍRITO DO KIKO DEIXOU-NOS



Uma simples notícia necrológica do Público de sexta-feira trouxe-me a triste nova da morte do Artur Castro Neves, um dos espíritos mais finos desta Cidade. Nunca pertenci ao grupo restrito de pessoas que convivia quotidianamente e de perto com a sua finura de espírito, mas desde os velhos tempos da aventura democrática da Faculdade de Economia do Porto, do ambiente editorial da Afrontamento e mais recentemente em torno do tema que foi a sua última preocupação (os media e a economia do digital) tive o raro privilégio de discutir ideias e cruzar abordagens com o seu espírito indomável. O Porto e o país vão sentir falta dessa finura de espírito e espanta-me que o seu desaparecimento não tenha despertado na imprensa a reação que merecia. Ao Kiko devo entre outras coisas um convite para as conferências de Serralves e a rara oportunidade de ter conhecido a viúva do economista brasileiro Celso Furtado, Rosa Aguiar Furtado, para apresentação de um livro póstumo do primeiro sobre a sua experiência como ministro da Cultura no Brasil.
Entre algumas reações que captei sobre o desaparecimento do Artur Castro Neves a que mais me impressionou foi a do Ex-Embaixador Seixas da Costa e que com a devida vénia ao seu inspirado autor aqui reproduzo como homenagem indireta a tão fino pensamento:
“Era um prazer passear com o "Kiko" (Artur Castro Neves) pelas ruas de Paris. Tinha delas uma leitura muito diferente do "turista diplomático" que eu nunca deixei de ser, olhava-as com a mirada de "vieux routier", contava a história da loja de esquina que já fora outra coisa, do andar onde vivera fulano, do bistrot onde se comia, bom e barato, algo que era sempre bem diferente dos locais que eu conhecia. Era viciado na "La Une", eu na "L'Écume des Pages". Depois das livrarias de cada um, encontrávamo-nos no Lipp. Para a semana, vou beber por lá, por ele, um Chablis que sei que apreciava.
 Paris era a cidade para onde ele saíra em 1962, onde se licenciou em Sociologia, onde lecionou na universidade, antes de o fazer por cá. Em Paris, escreveu na "L'Esprit", por cá editaria vários livros sobre o audiovisual, o tema que o fascinava. Por lá, viveu a sua mãe, que visitava regularmente, tendo eu, por quatro anos, sido beneficiário, pelo convívio, desse seu percurso cíclico. Surgia-nos lá em casa, com o inconfundível "papillon", sempre com uma oferta, umas flores, um livro, um chocolate ou uma compota. Trazia-nos a sua visão do país em crise, sempre original, fruto de um pensamento livre, feito de mundos que decantara. Refletia o mundo a partir dele, não de uma perspetiva paroquial. Tinha amigos de excecional qualidade, que gostava de partilhar, enriquecendo-nos. Através dele conheci gente muito interessante, em Paris ou em Brasília, onde nos visitou e nos iluminou os dias.
 Conhecemo-nos nos anos 80, em Lisboa, no Procópio, onde ele parava a espaços. Ficámos amigos num segundo. A capital, contudo, parecia-me que não era a sua "praia". Era o Porto, a sua terra, que lhe dava a identidade, aquela maneira única de estar na vida e na relação franca com os outros. O Kiko era uma espécie rara de intelectual urbano, porque não se enfronhava nas folhas, antes sorvia o quotidiano. Tinha uma graça natural, uma agitação quase adolescente. Era adepto de uma ironia culta, frequentemente feroz. Às vezes, divergíamos, politicamente e não só. No fundo, era um jogo: "picávamo-nos" um ao outro, divertidos.
 O Kiko deixou-nos, na madrugada de ontem. Quis o acaso que hoje eu estivesse de passagem no Porto. Pude, desta forma, despedir-me de um amigo com quem partilhava muitas inquietações, algumas certezas e, sempre, um olhar de esperança sobre Portugal. Deixamos aqui um abraço sentido à sua Família e um beijo muito amigo à Isabel.
Francisco Seixas da Costa
http://duas-ou-tres.blogspot.pt/2014/11/artur-castro-neves-1944-2004.html

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