domingo, 23 de novembro de 2014

NO FIO DA NAVALHA



Só o tijolo outonal das folhas dos dois liquidâmbares que se perfilam diante da varanda do meu escritório, em casa, consegue amainar as sensações de turbilhão deste fim-de-semana, em que todos os fantasmas da crise de regime se agitam.
Não vou discutir a detenção de José Sócrates do ponto de vista do modelo de prática judicial concreta que ela representa, em meu entender claramente orientada para afirmar uma imagem mediática da justiça que oculte a tragédia das suas próprias desgraças, não estando aqui em causa a sua autonomia e independência, em que todos queremos acreditar sobretudo porque ninguém quer regressar ao far-west dos ajustes de contas. Outros o fizeram a partir do interior do sistema judicial, como o advogado Magalhães e Silva, ontem na SIC Notícias e isso basta-me, concluindo que ainda há gente com sentido crítico das coisas, mesmo que operando no interior do sistema judicial. O assunto é controverso, mas a autonomia da justiça não significa que não se discutam politicamente as suas práticas.
Não vou também discutir as coincidências que alguns cabalistas por natureza e devoção encontraram no desencadear da operação e na eleição de António Costa para a liderança do PS. Essa discussão levar-nos-ia longe nas cogitações infernais que o turbilhão nos proporciona, pois não sabemos que informação os principais atores no turbilhão dispunham no momento em que a ação foi desencadeada.
A questão interessa-me do ponto de vista político. E, nessa perspetiva, há duas questões que merecem destaque. Uma, que está ligada ao modo como o passado não foi eficazmente gerido. A outra, que estará focada no modo como António Costa vai gerir o período que se avizinha, em que decidirá sempre condicionado do ponto de vista da comunicação por alguma incidência não esperada do longo processo que fará o seu lento caminho a partir de agora.
A primeira questão já foi neste blogue suficientemente tratada. A personalidade e o consulado de Sócrates são demasiado impactantes para que a sua avaliação política pelo PS permaneça indefinidamente num limbo, que nem é corte, nem identificação. Costa referiu na sua intervenção pública já como secretário-geral que o PS não segue as práticas estalinistas de cortar fotografias do passado e de criar buracos nas galerias com os rostos das lideranças no passado. Fica-lhe bem essa posição. Mas o problema não é esse. O problema não é de reabilitação, nem de esquecimento. O PS não tem uma avaliação política do consulado de JS e este turbilhão apanha-o desguarnecido nessa matéria.
E esse desguarnecimento condiciona obviamente a construção da alternativa eleitoral nos próximos 10-11 meses. Chocou-me há dias, tal como o assinalei neste espaço, a forma ingénua como o grupo parlamentar do PS (sobretudo o seu núcleo mais velho e inexperiente) se deixou escorregar na casca de banana que lhe foi colocada pela maioria em torno do legado de Sócrates. Alguns dias depois e em pleno turbilhão, é de admitir a hipótese de nesse incidente os deputados, quer os da maioria, quer os do PS, terem eventualmente alguma informação que tenha soprado sobre a investigação a JS.
A metáfora do fio de navalha que escolhi para o post não se aplica apenas ao PS que evoluirá com uma necessidade absoluta de um equilíbrio à prova de todas as incidências, comunicando uma agenda em condições semelhantes aquela que os mais velhos já enfrentaram quando fazem testes de audição e quando a audição de um ouvido é sujeita a toda a série de ruídos exteriores. A metáfora aplica-se também como uma luva ao próprio José Sócrates, com uma trajetória pessoal de risco, mesmo que descontemos a sanha persecutória de que terá sido alvo em determinados momentos. Dirão os cabalistas que o afrontamento da classe dos juízes no primeiro mandato de Sócrates terá sido fatal para levantar futuras tempestades. O afrontamento existiu, talvez mal medido, e já houve posições públicas da classe que podem dar razão aos cabalistas. Mas para mim a trajetória de Sócrates é de alto risco e a sua própria matriz comportamental e de personalidade acirra os efeitos dessa trajetória de risco em vez de os atenuar. A passagem residencial por Paris não fez mais do que confirmar essa estratégia de risco.
Mas de todo este turbilhão o facto mais isolado mais preocupante, ainda que contido e limitado, é a expressão do cidadão que concorria com os fotógrafos dos jornais para obter fotos de JS no Campus da Justiça e destilava a sua opinião/ódio de que finalmente via um político atrás das grades, mesmo que em detenção para interrogatório. Este para mim é o problema central e a semana das subvenções vitalícias preparou o lume para tal reação. Os sinais estão aí. Entre o justicialismo latente, o ódio irracional dos descamisados aos políticos e representantes destes últimos que se põem a jeito há que encontrar uma saída que nos ponha a salvo de qualquer um dos vértices.

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