Só o tijolo outonal das folhas dos dois liquidâmbares
que se perfilam diante da varanda do meu escritório, em casa, consegue amainar
as sensações de turbilhão deste fim-de-semana, em que todos os fantasmas da
crise de regime se agitam.
Não vou discutir a detenção de José Sócrates do
ponto de vista do modelo de prática judicial concreta que ela representa, em
meu entender claramente orientada para afirmar uma imagem mediática da justiça
que oculte a tragédia das suas próprias desgraças, não estando aqui em causa a
sua autonomia e independência, em que todos queremos acreditar sobretudo porque
ninguém quer regressar ao far-west
dos ajustes de contas. Outros o fizeram a partir do interior do sistema
judicial, como o advogado Magalhães e Silva, ontem na SIC Notícias e isso
basta-me, concluindo que ainda há gente com sentido crítico das coisas, mesmo
que operando no interior do sistema judicial. O assunto é controverso, mas a
autonomia da justiça não significa que não se discutam politicamente as suas práticas.
Não vou também discutir as coincidências que
alguns cabalistas por natureza e devoção encontraram no desencadear da operação
e na eleição de António Costa para a liderança do PS. Essa discussão levar-nos-ia
longe nas cogitações infernais que o turbilhão nos proporciona, pois não
sabemos que informação os principais atores no turbilhão dispunham no momento
em que a ação foi desencadeada.
A questão interessa-me do ponto de vista político.
E, nessa perspetiva, há duas questões que merecem destaque. Uma, que está
ligada ao modo como o passado não foi eficazmente gerido. A outra, que estará
focada no modo como António Costa vai gerir o período que se avizinha, em que
decidirá sempre condicionado do ponto de vista da comunicação por alguma incidência
não esperada do longo processo que fará o seu lento caminho a partir de agora.
A primeira questão já foi neste blogue
suficientemente tratada. A personalidade e o consulado de Sócrates são
demasiado impactantes para que a sua avaliação política pelo PS permaneça
indefinidamente num limbo, que nem é corte, nem identificação. Costa referiu na
sua intervenção pública já como secretário-geral que o PS não segue as práticas
estalinistas de cortar fotografias do passado e de criar buracos nas galerias
com os rostos das lideranças no passado. Fica-lhe bem essa posição. Mas o
problema não é esse. O problema não é de reabilitação, nem de esquecimento. O
PS não tem uma avaliação política do consulado de JS e este turbilhão apanha-o
desguarnecido nessa matéria.
E esse desguarnecimento condiciona obviamente a construção
da alternativa eleitoral nos próximos 10-11 meses. Chocou-me há dias, tal como
o assinalei neste espaço, a forma ingénua como o grupo parlamentar do PS
(sobretudo o seu núcleo mais velho e inexperiente) se deixou escorregar na casca
de banana que lhe foi colocada pela maioria em torno do legado de Sócrates. Alguns
dias depois e em pleno turbilhão, é de admitir a hipótese de nesse incidente os
deputados, quer os da maioria, quer os do PS, terem eventualmente alguma informação
que tenha soprado sobre a investigação a JS.
A metáfora do fio de navalha que escolhi para o post não se aplica apenas ao PS que
evoluirá com uma necessidade absoluta de um equilíbrio à prova de todas as
incidências, comunicando uma agenda em condições semelhantes aquela que os mais
velhos já enfrentaram quando fazem testes de audição e quando a audição de um
ouvido é sujeita a toda a série de ruídos exteriores. A metáfora aplica-se também
como uma luva ao próprio José Sócrates, com uma trajetória pessoal de risco,
mesmo que descontemos a sanha persecutória de que terá sido alvo em determinados
momentos. Dirão os cabalistas que o afrontamento da classe dos juízes no
primeiro mandato de Sócrates terá sido fatal para levantar futuras tempestades.
O afrontamento existiu, talvez mal medido, e já houve posições públicas da
classe que podem dar razão aos cabalistas. Mas para mim a trajetória de Sócrates
é de alto risco e a sua própria matriz comportamental e de personalidade acirra
os efeitos dessa trajetória de risco em vez de os atenuar. A passagem
residencial por Paris não fez mais do que confirmar essa estratégia de risco.
Mas de todo este turbilhão o facto mais isolado
mais preocupante, ainda que contido e limitado, é a expressão do cidadão que
concorria com os fotógrafos dos jornais para obter fotos de JS no Campus da
Justiça e destilava a sua opinião/ódio de que finalmente via um político atrás
das grades, mesmo que em detenção para interrogatório. Este para mim é o
problema central e a semana das subvenções vitalícias preparou o lume para tal
reação. Os sinais estão aí. Entre o justicialismo latente, o ódio irracional dos
descamisados aos políticos e representantes destes últimos que se põem a jeito
há que encontrar uma saída que nos ponha a salvo de qualquer um dos vértices.
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