sábado, 29 de novembro de 2014

RAZÃO E EMOÇÃO



Escrevo no início da noite de sábado sem ter uma visão segura do que se tem passado no Congresso do PS e sobretudo sem qualquer informação sobre o que terá sido a pressão inqualificável de jornalistas à cata de uma impressão do militante anónimo e de testemunhos fortes sobre a detenção de José Sócrates. Razões de trabalho afastaram-me da televisão e por isso esta reflexão é realizada sem rede, isto é, sem evidência segura sobre o que terá sido hoje o eco do congresso na comunicação social.
Mas, de acordo com a perspetiva que me interessa assinalar, a reflexão justifica-se qualquer que tenha sido, ou esteja a ser, a projeção da prisão de Sócrates na dinâmica envolvente do congresso.
As teses do Professor António Damásio e da sua mulher Hanna sobre as mais recônditas relações entre razão e emoção e todas as variantes dessa relevante investigação que os Damásio trouxeram à opinião pública nunca estiveram tão presentes como na presente situação com que o PS se debate. Explico-me.
Apesar da sua saída de cena em condições particularmente gravosas para o país, o pedido de resgate financeiro com as consequências gravosas que são hoje conhecidas, o político José Sócrates não é uma personalidade indiferente para qualquer militante socialista, dos que estão mais próximos aos mais afastados do núcleo do poder. A sua trajetória política e os sucessivos casos menos claros ou mais investigados pela comunicação social, da mais séria à mais vendável por um prato de lentilhas, normalmente umas bebidas ou uns bons almoços, deveriam transformá-lo num político de risco para a maioria desses militantes. Em alguns grupos de militantes esse risco era apreendido, pelo menos intuído ainda que não necessariamente verbalizado. Mas depois de quase um trimestre de desabamento de símbolos económicos do regime, por conseguinte num crescendo de tensão político-mediática, a sua detenção por presumidas atividades desenvolvidas durante o período em que foi primeiro-Ministro teria que estar em termos de impacto para além de qualquer antecipação possível dos riscos de uma trajetória política, por mais escrutinada que ela tenha sido.
Ainda por cima, num processo judicial de detenção e determinação de prisão preventiva que não está isento de críticas, todas as condições estavam criadas para que o PS emocional, dos compagnons de route, da amizade enraizada nas lides político-partidárias, da empatia entre personalidades, das cumplicidades e dos favores do passado, teria de emergir sobretudo como reação catártica a um golpe profundo.
O PS racional procurou controlar esse PS emocional, com a autoridade de António Costa a impor-se, em parte recorrendo ao chavão de que “o que é da justiça à justiça e o que é da política à política” (que não deve afastar a hipótese de discussão política sobre as condições de exercício da justiça), mas alertando principalmente para o facto de que há uma alternativa a construir ao desconchavo deste governo e umas eleições a ganhar, faça chuva faça sol, nas piores ou nas más condições.
Como já referi aqui em post anterior, se o PS tivesse realizado uma avaliação política aberta e serena sobre o consulado político de José Sócrates, não deixando de mergulhar nos processos políticos que terão resultado da personalidade do então primeiro-ministro, que não fez, então o PS racional teria melhores condições para gerir o PS emocional. Estes dois PS vão confrontar-se inevitavelmente nos próximos tempos e a racionalidade de António Costa vai ter de transferir a energia emocional para o combate ao desconchavo da atual maioria e sobretudo a um Passos Coelho, certamente mais remediado em Massamá do que o Sócrates de Paris, mas que à mais simples oportunidade deixa transparecer a sua postura rasteirinha de exploração política do tema do enriquecimento ilícito na sua última entrevista.
Esta reflexão já andava a marinar na minha cabeça há já alguns dias, mas a crónica de hoje de Pacheco Pereira fez luz no meu pensamento. A crónica chama-se “O combate político de Sócrates não é o nosso”. Uma pura verdade. O combate político de Sócrates também não é o meu, o que não significa que não esteja atento a eventuais desvarios da justiça, acaso eles estejam a manifestar-se: “Por favor projectem a recusa zangada do Governo para melhores causas do que o destino político do engenheiro Sócrates”.
Este é o desafio de António Costa e do seu ciclópico trabalho de aglutinar o PS racional e o PS emocional no combate para uma alternativa decente de governação, tudo isto apesar da indignação genuína de Soares alicerçada numa velha ideia de que as amizades devem sobrepor-se à avaliação política. Não há vida sem cortes e roturas. E o PS dificilmente lhes escapará nos tempos mais próximos.

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