A sociedade portuguesa tem uma relação histórica
conturbada com o tema das qualificações e o medo pelo “excesso” das mesmas tem
emergido historicamente em diferentes momentos como um dos mais aberrantes fantasmas
de uma sociedade que deveria preocupar-se, isso sim, era com o défice estrutural
de qualificações.
Na tese de doutoramento do Professor António Nóvoa
há uma análise preciosa deste fantasma português em que ele cita inclusivamente
uma notícia de primeira página de uma das primeiras edições do Século em que o
lançamento de um número ridiculamente baixo de novos licenciados em direito era
apontado como um perigo nacional.
Para além disso é nítido que a sociedade
portuguesa se encontra hoje num “plateau” em matéria de qualificações,
comprometendo por via dos fluxos de novos licenciados uma profunda inércia
estrutural que coloca Portugal num défice permanente para algumas ambições de
ser alguém na economia global. A inércia é tão grande que, ao mínimo sinal de
menor esforço de investimento nas qualificações, se compromete um futuro de
convergência face aos padrões comparativos de países com quem podemos disputar
alguns posicionamentos na economia global.
De fantasmas internos estamos conversados. Para
mal dos nossos pecados, vem agora a Merkel profunda dar-se ao desplante de
dizer que Portugal teria licenciados a mais e que o que o país precisa são de
formações vocacionais, de caráter técnico intermédio e já agora seguir a experiência
alemã nessa matéria.
Chamo-lhe Merkel profunda porque este pequeno
pormenor, que até pode ser um dislate de circunstância, até eventualmente mal
contextualizado, diz bem da conceção que Merkel tem da organização do espaço
europeu: de um lado os que podem aspirar à liderança do conhecimento e do outro
os que necessitariam apenas de algumas competências técnicas para poder aplicar
e trabalhar com os artefactos e equipamentos produzidos pelos detentores do
conhecimento e da inovação. As transferências de mão de obra mais qualificada
(licenciada) em direção aos primeiros resolveria entretanto pequenos desvios
que teimassem em manter-se. E também como gato escondido de rabo de fora uma
situação desta natureza eternizaria o desvio salarial do sul, potenciando por
essa via ao investimento alemão uma atraente relação produtividade-salário,
extremamente lucrativa.
Merkel não é uma catavento qualquer, tem formação
científica de base que mais justifica que o dislate encobre provavelmente uma
visão sobre as economias do sul que encaixa lindamente com todo o processo que
enquadrou as crises de dívida e o racional das políticas de austeridade. Tudo
começa a encaixar como se as afirmações de Merkel fossem a peça do puzzle que
faltava e que estava algures escondida. É para esta Merkel profunda que
deveremos direcionar as nossas preocupações e não para a obsessão com o excesso
de qualificações. O que a líder da coligação do poder na Alemanha nos quer
dizer é que não vale a pena termos grandes ambições de posicionamento na
economia global, restando-nos dotar o investimento estrangeiro de sólidas
competências técnicas intermédias garantidas por ensino técnico. Será que o
poder de resignação dos Portugueses estará assim tão enraizado?
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