Tal como tenho aqui referido o debate em torno da
pouco rigorosa associação das teses de Reinhart e Rogoff à resolução da crise
das dívidas soberanas por via de processos abruptos e socialmente penosos de
consolidação de contas públicas ilustra cabalmente a superioridade do debate
americano quando comparado com o europeu. E, como tenho vindo a salientar, Reinhart
e Rogoff são adversários duros de roer e têm, embora em posição de
inferioridade, contribuído decisivamente para a sua elevação.
A carta aberta que dirigiram a passada semana a Paul Krugman é uma excelente peça para compreender os argumentos em presença e
a especificidade da posição dos dois autores. Krugman não deixa de estar na
berlinda como foco desta carta, até porque o seu mais recente artigo na New York Review of Books está no centro
da questão. Mas não apenas por isso. O confronto dos argumentos permite
confirmar que a argumentação de Krugman não é totalmente isenta de imprecisões
na sua análise crítica aos dois autores em questão. Daí que pela carta passe
alguma sensação de melindre, de expressão de alguma injustiça de que terão sido
alvos. É o caso, por exemplo, da acusação feita aos autores de não terem
garantido pleno acesso às bases de dados que têm construído e trabalhado.
Haverá aqui provavelmente nuances tipicamente intra-academia USA que nos
escapam, mas essa questão é menor face ao interesse do debate.
O trunfo que Reinhart e Rogoff transportam para o
debate concentra-se sobretudo no seu valioso trabalho de análise histórica de
um número imenso de crises financeiras e dos períodos e penosidades implicados
pela sua recuperação.
Na sua defesa mais recente, R&R deixam
praticamente cair o argumento do limiar dos 90% de peso da dívida pública no
PIB, para se concentrarem na relação descendente entre peso da dívida pública
no PIB e crescimento económico, continuando a bater-se pela evidência de que os
mais endividados tendem a crescer menos 1%, o que face aos períodos prolongados
de subsistência do problema pode ser, em seu entender, bastante penalizador.
R&R não ignoram também que a relação peso da dívida – crescimento é ambivalente,
embora ao contrário de Krugman tendam a atribuir à possibilidade de ser o baixo
crescimento a determinar o aumento da dívida uma presença mais pontual.
Mas a dimensão em que R&R dão mais luta é
seguramente aquela em que os autores se demarcam da acusação de representarem
em termos concretos a fonte de racionalização da abordagem à crise das dívidas
soberanas. Os autores fornecem a esse respeito um conjunto suficientemente
representativo de evidências ilustrativas de posições por ambos assumidas em
momentos diversos segundo as quais a sua demarcação é clara.
Os autores recorrem para o efeito a uma curiosa
tipologia de situações de endividamento, situações dramáticas (como a
portuguesa, irlandesa ou grega) e situações não dramáticas (como a dos EUA, nos
tempos que correm). No primeiro caso, extensivo a todas as economias
periféricas, R&R preferem o corte da dívida destas economias ao estímulo
fiscal nas economias avançadas como a Alemanha, entendendo-a como uma via mais
direta e eficaz a curto prazo para retomar os mecanismos do crédito às
economias mais atingidas. E aqui parece-me haver uma contradição nos autores.
Rejeitam a hipótese do estímulo fiscal na Alemanha, principal destino das
exportações das economias periféricas, com o argumento de um eventual sobreaquecimento
da economia alemã que poderia obrigar Draghi a um eventual aperto de taxas de
juro. Mas não hesitam em defender a anulação de dívida e a injeção de capital
por parte da Alemanha nos seus bancos mais expostos a esse corte de dívida. A
exequibilidade da segunda opção quando comparada com a primeira não é
justificada. Para além disso, o sobreaquecimento da economia alemã como
resultado do eventual estímulo fiscal não parece muito convincente face ao grau
de utilização da capacidade produtiva. R&R parecem aqui colocar-se na pele
do sentimento alemão sobre os perigos dos riscos inflacionários.
Mas a importância da carta de R&R a Krugman
reside a meu ver na identificação do que é de facto a diferença crucial que os
separa. Apoiados na sua investigação empírica do longo prazo, R&R são
claros em declarar-se como alguém que sobrevaloriza os riscos de um
endividamento adicional para suportar o estímulo fiscal exigido por Krugman e
outros. Rejeitam-no por impossibilidade material nos países periféricos (daí a
sua preferência não pela austeridade, mas antes pela anulação de dívida).
Consideram-no arriscado face às evidências do passado nos países endividados
sem drama, sobretudo pelo risco que atribuem à volatilidade das taxas de juro:
R&R dirigindo-se a Krugman: “Pode estar certo e desta vez pode ser, apesar de tudo, diferente. Se isso acontecer
admitiremos que estávamos errados. Qualquer que seja o resultado, pretendemos
colocar os resultados à disposição e em contexto próprio da comunidade de
estudantes, responsáveis pela política económica e sociedade civil”.
O que não deixa de ser uma ironia, pois o subtítulo da obra seminal de R&R
é precisamente “This time is different”.
Concluindo, o que parece ser a linha divisória no
debate que opõe R&R aos seus detratores não é o uso indiscriminado da
austeridade pela austeridade como forma de superação das crises de
endividamento. R&R demarcam-se dessa posição, o que suscita a relevante
questão de saber que condições geraram essa associação pelos vistos indevida.
R&R defendem pelo contrário nos países com drama o corte da dívida e nos
outros uma preparação a prazo da estabilidade fiscal. A linha divisória está
antes na avaliação dos riscos associados ao estímulo fiscal para intervir no
denominador (crescimento): sobreavaliação em R&R apoiados na história;
subavaliação em Krugman e outros baseados na situação presente: taxas de juro
nulas ou negativas e produto claramente abaixo do produto potencial, logo
concedendo uma margem de manobra ao crescimento inflacionário. A única
abordagem empírica consistente que conheço para deslindar esta linha divisória
é a de DeLong e Summers e aplica-se à economia americana. O impacto do estímulo
fiscal em termos de crescimento económico surge superior aos custos futuros
inerentes aos custos do endividamento adicional. A procissão vai no adro e
certamente que neste preciso momento estará em curso nova investigação sobre o
tema. É assim que uma comunidade de ideias se desenvolve, aberta e não
abdicando de intervir no presente. O confronto com o marasmo das ideias do lá
de cá do Atlântico é confrangedor, por isso Ohli Rehn e outros medíocres se
arrepiam todos à mínima controvérsia.
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