segunda-feira, 27 de maio de 2013

A CARTA: R&R versus KRUGMAN



Tal como tenho aqui referido o debate em torno da pouco rigorosa associação das teses de Reinhart e Rogoff à resolução da crise das dívidas soberanas por via de processos abruptos e socialmente penosos de consolidação de contas públicas ilustra cabalmente a superioridade do debate americano quando comparado com o europeu. E, como tenho vindo a salientar, Reinhart e Rogoff são adversários duros de roer e têm, embora em posição de inferioridade, contribuído decisivamente para a sua elevação.
A carta aberta que dirigiram a passada semana a Paul Krugman é uma excelente peça para compreender os argumentos em presença e a especificidade da posição dos dois autores. Krugman não deixa de estar na berlinda como foco desta carta, até porque o seu mais recente artigo na New York Review of Books está no centro da questão. Mas não apenas por isso. O confronto dos argumentos permite confirmar que a argumentação de Krugman não é totalmente isenta de imprecisões na sua análise crítica aos dois autores em questão. Daí que pela carta passe alguma sensação de melindre, de expressão de alguma injustiça de que terão sido alvos. É o caso, por exemplo, da acusação feita aos autores de não terem garantido pleno acesso às bases de dados que têm construído e trabalhado. Haverá aqui provavelmente nuances tipicamente intra-academia USA que nos escapam, mas essa questão é menor face ao interesse do debate.
O trunfo que Reinhart e Rogoff transportam para o debate concentra-se sobretudo no seu valioso trabalho de análise histórica de um número imenso de crises financeiras e dos períodos e penosidades implicados pela sua recuperação.
Na sua defesa mais recente, R&R deixam praticamente cair o argumento do limiar dos 90% de peso da dívida pública no PIB, para se concentrarem na relação descendente entre peso da dívida pública no PIB e crescimento económico, continuando a bater-se pela evidência de que os mais endividados tendem a crescer menos 1%, o que face aos períodos prolongados de subsistência do problema pode ser, em seu entender, bastante penalizador. R&R não ignoram também que a relação peso da dívida – crescimento é ambivalente, embora ao contrário de Krugman tendam a atribuir à possibilidade de ser o baixo crescimento a determinar o aumento da dívida uma presença mais pontual.
Mas a dimensão em que R&R dão mais luta é seguramente aquela em que os autores se demarcam da acusação de representarem em termos concretos a fonte de racionalização da abordagem à crise das dívidas soberanas. Os autores fornecem a esse respeito um conjunto suficientemente representativo de evidências ilustrativas de posições por ambos assumidas em momentos diversos segundo as quais a sua demarcação é clara.
Os autores recorrem para o efeito a uma curiosa tipologia de situações de endividamento, situações dramáticas (como a portuguesa, irlandesa ou grega) e situações não dramáticas (como a dos EUA, nos tempos que correm). No primeiro caso, extensivo a todas as economias periféricas, R&R preferem o corte da dívida destas economias ao estímulo fiscal nas economias avançadas como a Alemanha, entendendo-a como uma via mais direta e eficaz a curto prazo para retomar os mecanismos do crédito às economias mais atingidas. E aqui parece-me haver uma contradição nos autores. Rejeitam a hipótese do estímulo fiscal na Alemanha, principal destino das exportações das economias periféricas, com o argumento de um eventual sobreaquecimento da economia alemã que poderia obrigar Draghi a um eventual aperto de taxas de juro. Mas não hesitam em defender a anulação de dívida e a injeção de capital por parte da Alemanha nos seus bancos mais expostos a esse corte de dívida. A exequibilidade da segunda opção quando comparada com a primeira não é justificada. Para além disso, o sobreaquecimento da economia alemã como resultado do eventual estímulo fiscal não parece muito convincente face ao grau de utilização da capacidade produtiva. R&R parecem aqui colocar-se na pele do sentimento alemão sobre os perigos dos riscos inflacionários.
Mas a importância da carta de R&R a Krugman reside a meu ver na identificação do que é de facto a diferença crucial que os separa. Apoiados na sua investigação empírica do longo prazo, R&R são claros em declarar-se como alguém que sobrevaloriza os riscos de um endividamento adicional para suportar o estímulo fiscal exigido por Krugman e outros. Rejeitam-no por impossibilidade material nos países periféricos (daí a sua preferência não pela austeridade, mas antes pela anulação de dívida). Consideram-no arriscado face às evidências do passado nos países endividados sem drama, sobretudo pelo risco que atribuem à volatilidade das taxas de juro: R&R dirigindo-se a Krugman: “Pode estar certo e desta vez pode ser, apesar de tudo, diferente. Se isso acontecer admitiremos que estávamos errados. Qualquer que seja o resultado, pretendemos colocar os resultados à disposição e em contexto próprio da comunidade de estudantes, responsáveis pela política económica e sociedade civil”. O que não deixa de ser uma ironia, pois o subtítulo da obra seminal de R&R é precisamente “This time is different”.
Concluindo, o que parece ser a linha divisória no debate que opõe R&R aos seus detratores não é o uso indiscriminado da austeridade pela austeridade como forma de superação das crises de endividamento. R&R demarcam-se dessa posição, o que suscita a relevante questão de saber que condições geraram essa associação pelos vistos indevida. R&R defendem pelo contrário nos países com drama o corte da dívida e nos outros uma preparação a prazo da estabilidade fiscal. A linha divisória está antes na avaliação dos riscos associados ao estímulo fiscal para intervir no denominador (crescimento): sobreavaliação em R&R apoiados na história; subavaliação em Krugman e outros baseados na situação presente: taxas de juro nulas ou negativas e produto claramente abaixo do produto potencial, logo concedendo uma margem de manobra ao crescimento inflacionário. A única abordagem empírica consistente que conheço para deslindar esta linha divisória é a de DeLong e Summers e aplica-se à economia americana. O impacto do estímulo fiscal em termos de crescimento económico surge superior aos custos futuros inerentes aos custos do endividamento adicional. A procissão vai no adro e certamente que neste preciso momento estará em curso nova investigação sobre o tema. É assim que uma comunidade de ideias se desenvolve, aberta e não abdicando de intervir no presente. O confronto com o marasmo das ideias do lá de cá do Atlântico é confrangedor, por isso Ohli Rehn e outros medíocres se arrepiam todos à mínima controvérsia.

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