domingo, 5 de maio de 2013

“MERKIAVEL”

 
 
(Ingram Pinn, http://www.ft.com)

Já aqui me referi mais do que uma vez ao sociólogo alemão Ulrich Beck, professor emérito na Universidade de Munique com ligações a Harvard e à LSE e dominantemente conhecido pela sua teoria da sociedade do risco. Pois dele foi recentemente traduzido pelas “Edições 70” o ensaio “A Europa Alemã”, um opúsculo de pouco mais de 100 páginas a transbordar de sumo sobre a candente questão da Europa (da sua crise às estratégias de poder em presença e à liderança de Merkel em especial).

Tudo começa com duas proclamações nucleares. A primeira – put society back in! – denuncia que o debate público esteja dominado quase exclusivamente pela perspetiva da economia – com a agravante de que “os conselhos dos economistas que dominam o debate se baseiam num ‘analfabetismo’ político-social” – quando “estamos sobretudo perante uma crise da sociedade e do ‘político’”.

A segunda denuncia o “monstro político” decorrente da ideia de que “a Europa se tornou alemã” e, consequentemente, de que “a Alemanha decide, hoje, sobre o Ser ou Não-ser da Europa”. Ao que acrescenta a constatação de uma Europa “separada por novos fossos e novas fronteiras” – entre países do Norte e do Sul, entre Estados credores e devedores, entre Estados da Zona Euro e Estados-membros da UE, entre governantes e populações – e a hipotética “quarta culpa” germânica que seria, depois das duas Guerras Mundiais e do Holocausto, a sua responsabilização pelo fracasso do euro e da UE.

Pelo meio, uma alusão à “particularidade histórica” do risco europeu – a incontrolabilidade tem origens internas e/ou na vontade política: “introduziu-se uma moeda comum sem que tivessem sido criadas simultaneamente instituições para supervisionar e coordenar eficazmente a política económica e financeiras dos países da zona euro” – e uma inevitável incursão pelo “velho mundo dos Estados nacionais” e pelo anacrónico conceito do “político” marcado por tal perspetiva. Com chamadas de atenção tão relevantes quanto as duas seguintes:
· “Existem tempos para a pequena política, que executa as regras, e existe um tempo para grande política, uma política que altera as regras”.
· “Deixou de ser possível manter a simples distinção entre a política interna e externa” e “a Europa torna-se um tema de política interna nos Estados-membros.”

Assumindo assim que “estamos numa época em que o ‘político’ assume novas formas”, Beck traça duas ordens de cenários relativos à transformação possível da ordem baseada em Estados nacionais: o “cenário hegeliano”, em que “os egoísmos nacionais determinarão as respostas à crise até o carro político chamado ‘Europa’ ficar pendurado com as rodas dianteiras sobre o escolho” e “desencadear forças terapêuticas”, e o “cenário Carl Schmitt”, cruzando com as reflexões deste sobre o “estado de exceção” e “bastante mais sombrio” em termos de legitimação democrática. Neste quadro, identifica ainda um conjunto de quatro tensões – que carateriza através de pares de conceitos: “mais Europa versus mais Estado nacional”; “’obrigatório por causa do perigo’ versus ‘proibido pelas leis’”; “lógica da ameaça de guerra versus lógica da ameaça do risco”; “capitalismo global versus política nacional” – e distingue apelativamente entre uma espécie de “revolucionários a tempo parcial” (as chancelerinas, os primeiros-ministros e os presidentes) e os “arquitetos da Europa” (que desenvolvem ideias no sentido de uma nova Europa).

Na componente mais assumidamente prospetiva do seu trabalho, Beck procura opor a velha Europa resultante da vontade das nações ao forjar de uma “campanha de alfabetização cosmopolita para a Europa”. Para o que começa por estabelecer uma assimilação da política hegemónica de Merkel aos princípios integrantes de “O Príncipe”, apontando a necessidade de abater um “maquiavelismo de novo tipo” (o “modelo Merkiavel”) em que evidencia quatro componentes: “não tomar partido no conflito gritante entre os arquitetos da Europa e os ‘ortodoxos”’ dos Estados nacionais”, mantendo em aberto ambas as opções contraditórias; utilizar a hesitação enquanto estratégia disciplinadora e tática de dominação, tornando a recusa (o “’não’ de utilização múltipla”) em “alavanca central da potência económica chamada Alemanha na Europa do risco financeiro”; associar o primado da elegibilidade nacional com o papel de arquiteto europeu, fazendo do plano político interno uma espécie de “teste de aptidão” das medidas para a salvação do euro e da UE; prescrever aos países parceiros a “cultura da estabilidade alemã”, o “imperativo alemão” assente na centralidade da poupança.

As páginas finais partem então em busca da alternativa de uma “viragem histórica da política dominada pelos Estados nacionais para uma política transnacional e para uma sociedade europeia”, de uma “sociedade pós-nacional de sociedades nacionais” capaz de “superar o Estado nacional e de chegar a um contrato social europeu”. Nelas se fala de cosmopolitismo, de uma “integração concretizada horizontalmente” (vs. um “processo imposto verticalmente”), de uma “nova era social-democrata a nível transnacional” (com os partidos políticos a terem de fazer a “quadratura do círculo” de um salto organizacional e programático para a transnacionalização da política europeia em simultâneo com vitórias em eleições nacionais), da imprescindibilidade de recursos próprios, de um convívio entre a “política institucionalizada” (partidos, governos, parlamentos) e a “subpolítica não institucionalizada dos movimentos sociais”, de motivações que talvez já “só possam ser criadas a partir da base, da sociedade civil”…

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