domingo, 26 de maio de 2013

PRECIOSIDADES (12)


Luís António Noronha Nascimento (LANN) é um personagem pouco consensual e que ocupa funções de grande destaque na sociedade portuguesa – presidente do Supremo Tribunal de Justiça, cargo que abandonará dentro de dias após seis anos de exercício – numa área cuja nuclear relevância contrasta com a inércia que lhe parece entranhada.

A sua recente entrevista ao “Expresso” não foi objeto de grande atenção, mas merece-a incontestavelmente. Como quando sustenta: “Não temos uma Europa. Temos três Europas. Temos a herança do império romano, da Europa bizantina e ortodoxa e a dos povos fora do império.” Ou que “a Europa é uma amálgama, porque surgiu da necessidade de juntar dois países que foram o terror da Europa: a Alemanha nazi e a França de Napoleão”.

LANN afirma ainda: “Estamos a assistir a uma coisa de que tenho algum receio em falar, que é o reaparecimento da velha Prússia num momento em que a crise começa a alastrar. Não é a Alemanha. É a Prússia.” Concretizando: “Dentro da Alemanha discute-se se algumas regiões devem pagar o que as outras gastam. A Prússia fez a unificação da Alemanha através da força. E não sei até que ponto, através da pauperização dos países do sul da Europa, a Prússia não estará a usar o método que usou no século XIX.”

E, considerando a situação que nos enquadra, LANN pronuncia-se também corajosamente quanto a um tema marcante da atualidade: “Como cidadão concordo com o que diz o economista Ferreira do Amaral. Devíamos sair do euro, mas não devíamos sair sozinhos. Devíamos sair em bloco. Se chegarmos ao pé da Alemanha e dissermos que vamos embora eles ficam na mesma. Agora se em bloco, Portugal, Itália, Espanha, Grécia e até a Eslovénia disserem que vamos embora, somos os PIGS e vamos embora…”

Mas a verdadeira preciosidade que chamo a este nosso “quadro de honra” é a que consta da parte final do seu penúltimo discurso de abertura do Ano Judicial (janeiro de 2012), que recuperei por sugestão de Eduardo Paz Ferreira e seguidamente reproduzo com a devida vénia e votos de bom regresso ao Porto:


Por último e para terminar, a questão dos ‘direitos adquiridos’ que renasce como a Hidra sempre que entramos em crise económica ou social.
E a sentença dos comentaristas é quase sempre unânime: em época difícil não há direitos adquiridos, o que quer dizer que se pode atingir, ou seja, baixar, sem limites definidos, as pensões de reforma fixadas, os vencimentos ou salários estabilizados e as prestações acordadas.
Não se nega que em situações excecionais possa haver soluções excecionais, mas com limites definidos, à semelhança do que sucedeu no fim da 1.ª grande guerra quando surgiu a teoria da imprevisão abrindo brecha no princípio da estabilidade contratual; mas o curioso na opinião daqueles comentaristas é o unilateralismo do seu raciocínio incapaz de perceber os efeitos jurídicos bilaterais que ele contém e que, de certeza, muita gente recusará.
Os direitos são ou originários ou adquiridos.
Originários são praticamente tão-só os direitos de personalidade, entre os quais se contêm os direitos potestativos de aquisição de futuros direitos adquiridos; adquiridos são todos os outros.
Vale isto por dizer que direitos adquiridos não são apenas aqueles de que se fala em épocas de crise, isto é, as pensões fixadas, os salários estabilizados e as prestações acordadas; são também os direitos obrigacionais dos credores, os direitos de propriedade e os direitos societários dos sócios dominantes ou não.
Defender que não há direitos adquiridos é dizer que todos eles, mas todos, podem ser atingidos, diminuídos ou, no limite, eliminados; ou seja, é admitir o regresso ao tempo das ocupações, das autogestões ou do confisco porque estamos perante direitos adquiridos alteráveis perante situações excecionais.
Será que se está preparado para aceitar todas, mas todas, as sequelas lógico-jurídicas de quem assim pensa?
Os direitos adquiridos são o produto final de uma civilização avançada que se estruturou à volta da teoria do pacto ou do contrato social que, desde o séc. XVII foi sendo elaborada por pensadores diversos desde Hobbes, Francisco Suarez, Locke, até à obra conhecida de Rousseau, que fundamentou a legitimidade do poder no pacto social que os cidadãos aceitavam delegando o seu exercício e retirando, assim, ao príncipe a titularidade originária daquele.
A evolução posterior desta teoria levou à conceção da soberania popular delegada pelo povo nos seus representantes eleitos, isto é, levou à democracia representativa; mas, nela, permanece a noção subliminar do contrato tacitamente aceite pelo povo e que contem em si, também, a ideia de solidariedade entre os cidadãos que contratualizaram o pacto.
Quando o contrato se rompe, rompe-se também a solidariedade, porque tal rutura traz sempre consigo a violação do equilíbrio das prestações contratuais com o benefício de uns em detrimento de outros.
Num artigo publicado em 1855 no Porto e que precedeu as suas ‘Memórias do Cárcere’, Camilo Castelo Branco escreveu isto mesmo de forma exemplar.
Veja-se esta pequena passagem desse seu texto: ‘A inércia da autoridade, que não se lhe perdoa, é talvez a consciência de que ninguém se deixa morrer de fome, enquanto o braço pode dedicar-se a um trabalho qualquer, embora desonroso. Ao homem desamparado não se lhe podem pedir contas do pacto social, porque a sociedade não quis aliança com ele quando o desamparou.’
E termino aqui a citação porque o que se segue na escrita de Camilo é verdadeiramente perturbador.
No relatório de 2008 do Eurostat, Portugal é, na União Europeia, um dos países com maior desigualdade de rendimentos entre ricos e pobres, só ultrapassado pela Roménia, Bulgária e Letónia e logo seguido, entre os países mais desenvolvidos (e a fazer fé em Tony Judt) pela Grã-Bretanha.
O mesmo relatório adverte que, na União, 1 em cada 6 cidadãos está em risco de pobreza, número vermelho similar ao que existia em Paris por volta de 1788/1789, os anos do Rubicão; e a Dinamarca, país ‘insuspeito’, é (na União) aquele onde o endividamento individual bruto atinge maior percentagem.
O que isto significa em termos de coesão social ou - dito de outra forma - em termos de solidariedade que, psicologicamente, sustenta o contrato social pode ser devastador.
Daí que falar na inexistência de direitos adquiridos num discurso unilateral e unipolar, ainda por cima num país de rendimentos tão desiguais, pode ser a abertura da caixa de Pandora que nos leve ao Inverno (ou ao Inferno) do nosso descontentamento.

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