sábado, 21 de fevereiro de 2015

A CONSAGRAÇÃO DO ROMANCISTA CHICO


Ao quinto romance e aos seus 70 anos, Chico Buarque chegou na ficção ao que já há muito conseguira na música: o topo. Não que os seus anteriores livros fossem desinteressantes ou menos bem escritos. “Estorvo” (1991), “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003) e “Leite Derramado” (2009) tinham todos o selo de qualidade de um intelectual de primeira água como é o Chico e foram todos, aliás, objeto de premiações literárias diversas e reconhecidas. Mas, e o defeito até pode ser meu, ao encerrar cada um deles senti sempre que alguma coisa faltava, quiçá nem sempre a mesma mas claramente alguma coisa.

Em contrapartida, “O Irmão Alemão” (2014) encheu as minhas medidas, aliás modestas no plano essencial. Um estilo escorreito mas coerente, uma linguagem divertida mas sem concessões, um ritmo intenso mas fluido e, em resultado de tudo isso, uma história que está muito bem contada e agarra o leitor – uma história que tem uma base real no facto de o pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), ter tido um filho de uma relação tida na Alemanha quando por lá viveu em 1929/30; não obstante, o romance não é um relato histórico, antes vive numa permanente tensão entre memória biográfica e invenção criativa.

Encontrei ali, naquela admiração e fascínio pelo pai e pelos seus livros, qualquer coisa que me recordou Borges e a biblioteca de um tio. Como quando escreve: “Calma, Ciccio, disse minha mãe, quando já crescido lhe perguntei por que meu pai não escrevia um livro, uma vez que gostava tanto deles. Ele vai escrever o melhor libro del mondo, disse arregalando os olhos, ma prima tem que ler todos os outros. A biblioteca do meu pai contava então uns quinze mil livros. No fim superou os vinte mil, era a maior biblioteca particular de São Paulo, depois da de um bibliófilo rival que, dizia meu pai, não havia lido nem um terço do seu depósito. Calculando que ele tenha acumulado livros a partir dos dezoito anos, posso tirar que meu pai não leu menos que um por dia. Isso sem contar os jornais, as revistas e a farta correspondência habitual, com os últimos lançamentos que por cortesia as editoras lhe enviavam. A grande maioria destes ele descartava já ao olhar a capa, ou após uma rápida folheada. Livros que jogava no chão e mamãe recolhia de manhã para juntar no caixote de doações à igreja. E quando porventura ele se interessava por alguma novidade, sempre encontrava algum pormenor que o remetia a antigas leituras. Então chamava com seu vozeirão: Assunta! Assunta!, e lá ia minha mãe atrás de um Homero, um Virgílio, um Dante, que lhe trazia correndo antes que ele perdesse a pista. E a novidade ficava de lado, enquanto ele não relesse o livro antigo de cabo a rabo. Por isso não estranha que tantas vezes meu pai deixasse cair no peito um livro aberto e adormecesse com um cigarro entre os dedos ali mesmo na espreguiçadeira, onde sonharia com papiros, com os manuscritos iluminados, com a Biblioteca de Alexandria, para acordar angustiado com a quantidade de livros que jamais leria porque queimados, ou extraviados, ou escritos em línguas fora do seu alcance. Era tanta leitura para pôr em dia, que me parecia improvável ele vir a escrever o melhor libro del mondo.”

E depois são os múltiplos pormenores, dos deliciosos àqueles em que nos reconhecemos e aos que nos dão matéria para pensar. Dois exemplos, embora nitidamente por defeito: (i) “Então meu pai finalmente pousou o garfo no prato e levou os óculos à testa, no que o imitei com a expectativa de que pela primeira vez na vida nos olharíamos nos olhos. Mas não, não foi para mim que ele se voltou, foi para o meu irmão, que lhe mostrava por baixo da mesa uma foto da Playboy: olha só que lombo! Formidável, disse meu pai, um lombo extraordinário! E mamãe catava farelos de pão na toalha, como sempre fazia quando se fazia desentendida nas refeições.”; (ii) “Nunca pus fé em fenômenos sobrenaturais, muito menos poderia presumir que uma professora catedrática como a Natércia temesse assombrações. Mas estávamos entretidos na cama, que balançava e rangia regularmente, quando após uma espécie de gemido no alto da estante, um Dom Quixote de capa dura tombou no chão sem mais nem menos. No ato a Natércia me expulsou de cima dela com um corcoveio, exibiu o braço arrepiado e disse: isso é coisa do seu irmão. Ponderei que era mais plausível a estrutura da casa ter sofrido um ligeiro abalo, haja vista a condição das vigas de madeira, infestadas de cupins, sem falar nas rachaduras das paredes que os livros encobriam. Mas catástrofes da engenharia não amedrontavam a Natércia, que me puxou para o meu quarto dos velhos tempos, onde retomamos nossas safadezas.”; (iii) “Grisalho, mais para gordo, um ar afável, Robinson me lembra alguém não sei de onde. Mas com a idade nos tornamos maus fisionomistas, talvez devido ao acúmulo de fisionomias nas retinas, e não há cara nova que não nos lembre alguém remotamente.”.

Na contracapa refere-se que “a invenção realista de Chico Buarque é uma verdadeira lufada de ar fresco”. À falta de encontrar uma melhor formulação, assino por baixo na íntegra...

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