Mais uma excelente passeata cultural guiada pelo Joel Cleto neste fim de semana, desta vez centrada em Matosinhos até para merecidamente correspondermos às pressões de vários membros do grupo que têm as suas raízes no concelho ou que o adotaram como local de residência (com a Palmira Macedo à cabeça, institucionalmente falando).
Referir-me-ei aqui apenas a uns poucos apontamentos curiosos. O primeiro passou pelo relato da lenda fundacional da cidade com o apoio visual do magnífico painel de Júlio Resende que decora a Sala de Sessões da Câmara Municipal (momento também para recordar o arquiteto que projetou o edifício, Alcino Soutinho): à época da dominação romana na região, o grande senhor Cayo Carpo teria escolhido um vasto areal do lugar de Bouças (designação do atual concelho até ao início do século XX) para realizar as festividades do seu casamento; nesse âmbito, e após desafiar os outros senhores para uma corrida invulgar de cavalos pelo mar dentro, defronta-se com o milagre de uma cavalgada sobre as águas em direção a um veloz barco de pedra (que traria o corpo de Santiago da Palestina para a Galiza) e perante as explicações dos tripulantes converte-se ao cristianismo; por fim, e no regresso a terra, cavaleiro e cavalo parecem desaparecer engolidos pelas águas do mar até que ressurgem milagrosamente cobertos (“matizados”) de vieiras, o que dá origem a que o senhor romano e a praia passem a ser conhecidos pela designação “Matizadinho” – um topónimo que evoluirá, ao longo dos séculos seguintes, para Matosinhos.
Uma segunda nota para destacar a visita à igreja matriz e uma outra lenda associada à imagem do Senhor de Matosinhos, tida por ser um Cristo crucificado dos mais antigos existentes em tamanho natural. Segundo a lenda, o seu autor teria sido Nicodemos (um dos homens que teria presenciado os últimos momentos de vida de Jesus, retirando-o da cruz e limpando-o) e teria sido o próprio a atirar a imagem ao mar e este a trazê-la da Judeia até dar à costa na praia de Bouças no ano de 124, embora chegando já sem um braço; o milagre que ficou para a história teria ocorrido quando uma mulher, que apanhara na praia um pedaço de madeira para a sua lareira, não conseguia que o mesmo ardesse e se deparou atónita com a sua filha muda a balbuciar que se tratava do braço em falta do Bom Jesus de Bouças – eis o que está na base da devoção e da celebração do Senhor de Matosinhos.
A igreja, construída no século XVI e restaurada no século XVIII (com fachada de Nasoni), tem aspetos notáveis, com especial saliência para o imponente altar-mor em talha barroca mas incluindo outros motivos de interesse como o ilustram o retábulo da árvore de Jessé, a imagem de S. Pedro, o cofre com os restos mortais do bispo de Évora (D. Geraldo Domingues, assassinado durantes as desordens civis da reinado de D. Dinis) ou as capelas da via sacra exterior. De registar ainda o provável papel filantrópico de Santa Mafalda (infanta de Portugal, filha de D. Sancho I, e rainha de Castela, viúva de Henrique I falecido com treze anos de idade) na manutenção e conservação do crucifixo e outras obras que existiam no mosteiro de Bouças (que recebeu em testamento do pai), antes de se vir a dedicar ao mosteiro feminino de Arouca.
Andamos também pela Galeria Nave dos Paços do Concelho, onde ainda está patente a exposição “15 Tesouros de Matosinhos” que celebra os 500 anos de atribuição do foral ao concelho por D. Manuel I e na qual Joel Cleto participou ativamente em termos de investigação, conceção e curadoria. E foi um privilégio assim percorrer a história de Matosinhos através de um diversificado conjunto de peças nunca ou raramente expostas em termos públicos (a imagem de Nossa Senhora da Conceição do Convento de Leça, o Bom Pastor em marfim indo-português, a tapeçaria de Guilherme Camarinha evocativa das origens lendárias do Senhor de Matosinhos, o escafandro utilizado na extraordinária construção do porto de Leixões, o painel publicitário de azulejos proveniente das antigas instalações da “Real Vinícola”, o óleo “Gente do Mar” de Augusto Gomes, a maquete da Piscina das Marés projetada por Siza Vieira, entre outras) e da evocação de 15 personalidades ligadas ao concelho por nascimento, vida ou morte (como Gonçalves Zarco, Passos Manuel, Florbela Espanca, Abel Salazar, Óscar Lopes ou Guilhermina Suggia).
Mais ao final da tarde, acabamos na Galeria Municipal acompanhados de muita e variada gente que quis associar-se à inauguração da exposição “Siza Design – A Recuperação do Sentido do Tempo”, organizada pela Câmara e pela ESAD e comissariada por Maria Milano. Pouco antes, Eduardo Souto de Moura tinha assinado com o presidente Guilherme Pinto o contrato que assegurará a entrega do seu espólio (composto por mais de 400 maquetas de estudo, pela coleção de maquetas de apresentação que integram a exposição itinerante “Temi i projeti” e por 54 painéis com fotografias de Luís Ferreira Alves e esquissos do arquiteto relativos às suas obras mais emblemáticas) à futura Casa da Arquitetura.
Uma tarde em cheio...
Sem comentários:
Enviar um comentário