terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A SERENA PERCEÇÃO DA BIOLOGIA

(Fotografia de Ana Brígida)


Os biólogos sempre tiveram uma aptidão especial para fora do seu campo científico se pronunciarem sobre a mudança nas sociedades em que estão inseridos. Tenho de confessar que tenho uma particular apetência para mergulhar nessas incursões sobre o fenómeno social, embora isso irrite profundamente os sociólogos mais rigorosos, que não se revêm nessas abordagens e na invasão do seu campo científico.
Mas há no pensamento da biologia quando transposto ainda que acidentalmente para o campo da mudança social uma serena perceção das coisas na qual me revejo e peço desculpa aos meus amigos sociólogos.
É o caso da entrevista de Alexandre Quintanilha ao Jornal i (Kátia Catulo), na qual o biólogo mais do que o físico nos brinda com uma serenidade entusiasmante, por mais paradoxal que esta associação possa parecer.
Embora a entrevista incida preferencialmente no tema da ciência em Portugal e na desvalorização a que tem sido submetida por uma política de cortes orçamentais sem estratégia consistente a suportá-la, nas entrelinhas e nos comentários laterais encontramos preciosas referências à mudança social em Portugal pós revolução democrática.
É assim, por exemplo, que Quintanilha observa que foram as mulheres que ganharam mais com a liberdade política do que os homens, pois não se limitaram a essa liberdade política, ela potenciou outras liberdades que o contexto social do antigo regime lhes cerceava. E o importante é que, no quadro de uma sociedade estruturalmente conservadora mas profundamente tolerante em relação à profunda mudança dos costumes e valores que emergiu com a democracia, Quintanilha associa essa progressão da mulher a um pujante processo de combinação de educação e empowerment, indissociáveis uma da outra.
O seu olhar de biólogo vê com algum desdém os que se chocam com a saída de jovens cientistas para o estrangeiro. O problema não está na saída, está na inexistência de condições para proporcionar a circulação e intercâmbio de conhecimento de que o país beneficiou em tempos, numa clara alusão à riqueza da diversidade. E acolhe serenamente o argumento do tempo profundo e do tempo longo para explicar que o retorno (económico e social) da ciência em Portugal não pode s rer o mesmo do observado em países como a Alemanha e os EUA que não viveram no tempo recente a penalizadora path dependency do passado pesado da sociedade portuguesa.
Regressando sempre ao tema da tolerância social, acaricia o envelhecimento (serenidade e não azedume) e regista o lento desaparecimento da esperança dos jovens, dos velhos e das famílias como primeiro passo para a resignação, ou seja para a aversão à mudança, como sendo o principal traço do Portugal pós resgate financeiro.

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