domingo, 22 de fevereiro de 2015

MUITO CINEMA E MUITO MAIS


Em dia de Óscares, justificar-se-á que falemos de cinema. O meu pretexto imediato é um filme absolutamente notável de um realizador turco (Nuri Bilge Ceylan), aliás o filme que ganhou merecidamente a “Palma de Ouro” do Festival de Cannes deste ano. “Sono de Inverno” começa por ser incomparável pelo espaço em que se desenrola – a Capadócia, na Turquia profunda, não tem paralelo, nas suas casas e abrigos escavados na rocha, nas suas paisagens quase lunares, na despojada brancura de toda aquela neve que acompanha o enredo. Depois, é o isolamento e a vida das gentes, pesada, constrangida, amargurada, desesperada. E são também aqueles silêncios dominantes, entrecortados pela mestria dos movimentos da câmara e por sons da natureza ou vulgares e levemente preenchidos por acordes de uma sonata para piano de Schubert.

Mas o melhor de tudo, para mim, está no tema difuso que nos é proposto e nos diálogos que lhe vão dando forma. Aquelas deambulações erráticas do protagonista Aydin (Haluk Bilginer), um ator retirado que vive com a sua jovem mulher Nihal e uma irmã traumatizada por um divórcio num hotel de charme herdado na região, aquelas suas conversas com hóspedes circunstanciais, aquela sua deslizante negação de mínimos de entrosamento com a sociedade local, aquela sua procura de um sentido em escritos desconexos e nas teclas de um computador, tudo isso culminando em momentos tão psicologicamente ricos quanto os da sua tensa discussão com a irmã, dos seus acesos conflitos com a mulher, do dramático pedido de perdão do filho de um seu inquilino, da visita da mulher a casa deste ou daquele final conscientemente dúbio.


“Os teus elevados princípios levam-te a odiar o mundo”, acusava a mulher daquele intelectual rico e bem intencionado mas cada vez mais alheado do sofrimento material ou pessoal que o rodeava. Um hipócrita, como sugeriu a irmã? Ou simplesmente um ser desencantado, perdido e revoltado perante as sinuosas exigências da vida? Uma equação cujos termos tocam a todos os que existem, invariável e avassaladoramente: o pensamento mais do que a ação, os planos abafados pela força da ilusão, a opressivo sentimento da consciência que está expresso naquela alusão shakespeareana: “Consciência não é mais do que uma palavra que os covardes usam; criada para manter a veneração dos poderosos.”

Ceylan lembra um certo Bergman, aquele que soube tratar como ninguém o indivíduo, ligando pessoas abstratas, porque desligadas dos lugares e dos tempos, e sujeitos concretos, porque feitos das imbricações e dos limites que constituem a sua circunstância. Deslumbrante!


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