sábado, 7 de fevereiro de 2015

INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E A ÉTICA DA AUSTERIDADE

(Protesto na Comissão de Saúde do Parlamento)


Na passada quinta-feira, num Quadratura do Círculo em que o tema da vitória do SYRIZA e a digressão pelas capitais europeias foram bastante mal tratados, com por exemplo com uma intervenção de José Pacheco Pereira que ficou bastante aquém do seu artigo de hoje no Público, bem mais contundente e incisivo, o programa valeu pela discussão em torno do tratamento da hepatite C. Quis a dinâmica das coisas que a transmissão coincidisse com a notícia de que o Paulo Macedo e o governo tinham conseguido um acordo aparentemente positivo com a multinacional americana que detém a patente do novo medicamento para tratar os 13.000 pacientes diagnosticados, o que ainda proporcionou maior densidade à discussão. É necessário muita elevação e um rigoroso enquadramento ético para discutir um tema que envolve o direito à vida e a uma saúde decente, que exige também uma espécie de ética da morte, sobretudo quando os media e sobretudo a televisão dão a uma morte evitável uma carga motiva que suplanta qualquer tentativa de distanciamento. Imaginei-me numa daquelas situações e provavelmente não estaria disposto a discutir a questão com uma entrada pela ética.
Como é óbvio, a intensidade do debate é ainda fortemente estimulada porque a saúde esteve sujeita como as restantes dimensões de intervenção pública aos cortes da austeridade, que hoje sabemos terem sido essencialmente realizados sem qualquer suporte de combate às ineficiências e de estratégia de reorganização de serviços. A saúde constitui um domínio em que o tema dos cortes de despesa pública assume particularidades que não podem ser escamoteadas. Para além do valor da vida humana, o setor é conhecido por dois condicionantes de sentido muito contraditório entre si. Em primeiro lugar, são conhecidos os diagnósticos de ineficiências profundas e sobretudo a dificuldade de diálogo entre quem tem que velar pela eficiência e os profissionais de saúde, sobretudo no serviço nacional de saúde. Sublinho este ponto porque há evidências seguras de que os profissionais de saúde têm um comportamento muito diferenciado face aos controllers quando exercem parte do seu tempo em hospitais privados. Em segundo lugar, a saúde é um dos raros domínios de atividade em que o progresso tecnológico não se traduz em descida de preços relativos, mas antes numa tendência continuada para a alta desses preços relativos à medida que a sofisticação científica e tecnológica.
Não vou aqui tratar a imbecilidade das declarações de Passos Coelho quanto a esta matéria, quando pelos vistos o governo estava em plenas negociações com a multinacional americana.
Do ponto de vista do objeto deste blogue, interessa-me sobretudo discutir o que significa existir uma forte presença de investigação científica privada, aliás cada vez mais realizada num contexto de fortíssima concentração empresarial, em domínios com profundo impacto em salvar vidas humanas, no fundo uma forma máxima e extrema de externalidade positiva de um dado conhecimento, salvar ou não salvar vidas. Sabemos que o valor de uma patente está fortemente dependente do investimento que tornou possível a aplicação farmacêutica de uma determinada descoberta científica, não discutindo por agora se essa descoberta científica resultou de investigação científica fundamental concretizada com fundos públicos ou se, pelo contrário, foi toda ela produto de um investimento privado. Mas o valor da patente depende também dos rendimentos líquidos futuros gerados pelo novo medicamento. Não tenho elementos para afirmar se o preço inicialmente cobrado pela GILEAD SCIENCES para o tratamento com SOVALDI era ou não especulativo no sentido de querer precipitar a curto prazo rendimentos futuros e com isso melhorar o fluxo de financiamento a outras investigações em curso por parte da multinacional americana. António Ferreira, administrador do Hospital São João, classificou a GILEAD SCIENCES de fornecedor hostil, tendo inclusivamente levado o caso à Entidade Reguladora da Saúde e à Provedoria de Justiça. A tão reclamada investigação e desenvolvimento empresarial tem neste domínio o condicionante de poder colocar os sistemas públicos de saúde perante um condicionamento ético e de alocação de recursos com implicações políticas incalculáveis. Uma política de definição de preços de tratamento que escape a uma rigorosa regulação que tem de ser necessariamente conduzida a nível mundial submete os sistemas públicos, sobretudo os universais e gratuitos, a pressões de racionamento que exigem uma longa maturação e avaliação éticas.
Neste caso, espanta e diz bem do estado de decomposição em que a União Europeia se transformou que não tenha sido tentado (não tenho evidências do contrário) um acordo global entre a Comissão Europeia e a GILEAD, com o cálculo de preços de tratamento à paridade de poder de compra.

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