(Protesto na Comissão de Saúde do Parlamento)
Na passada quinta-feira, num Quadratura do Círculo
em que o tema da vitória do SYRIZA e a digressão pelas capitais europeias foram
bastante mal tratados, com por exemplo com uma intervenção de José Pacheco
Pereira que ficou bastante aquém do seu artigo de hoje no Público, bem mais
contundente e incisivo, o programa valeu pela discussão em torno do tratamento
da hepatite C. Quis a dinâmica das coisas que a transmissão coincidisse com a
notícia de que o Paulo Macedo e o governo tinham conseguido um acordo
aparentemente positivo com a multinacional americana que detém a patente do
novo medicamento para tratar os 13.000 pacientes diagnosticados, o que ainda
proporcionou maior densidade à discussão. É necessário muita elevação e um
rigoroso enquadramento ético para discutir um tema que envolve o direito à vida
e a uma saúde decente, que exige também uma espécie de ética da morte,
sobretudo quando os media e sobretudo
a televisão dão a uma morte evitável uma carga motiva que suplanta qualquer
tentativa de distanciamento. Imaginei-me numa daquelas situações e
provavelmente não estaria disposto a discutir a questão com uma entrada pela ética.
Como é óbvio, a intensidade do debate é ainda
fortemente estimulada porque a saúde esteve sujeita como as restantes dimensões
de intervenção pública aos cortes da austeridade, que hoje sabemos terem sido
essencialmente realizados sem qualquer suporte de combate às ineficiências e de
estratégia de reorganização de serviços. A saúde constitui um domínio em que o
tema dos cortes de despesa pública assume particularidades que não podem ser
escamoteadas. Para além do valor da vida humana, o setor é conhecido por dois condicionantes
de sentido muito contraditório entre si. Em primeiro lugar, são conhecidos os
diagnósticos de ineficiências profundas e sobretudo a dificuldade de diálogo
entre quem tem que velar pela eficiência e os profissionais de saúde, sobretudo
no serviço nacional de saúde. Sublinho este ponto porque há evidências seguras
de que os profissionais de saúde têm um comportamento muito diferenciado face
aos controllers quando exercem parte do seu tempo em hospitais privados. Em
segundo lugar, a saúde é um dos raros domínios de atividade em que o progresso
tecnológico não se traduz em descida de preços relativos, mas antes numa tendência
continuada para a alta desses preços relativos à medida que a sofisticação
científica e tecnológica.
Não vou aqui tratar a imbecilidade das declarações
de Passos Coelho quanto a esta matéria, quando pelos vistos o governo estava em
plenas negociações com a multinacional americana.
Do ponto de vista do objeto deste blogue,
interessa-me sobretudo discutir o que significa existir uma forte presença de
investigação científica privada, aliás cada vez mais realizada num contexto de fortíssima
concentração empresarial, em domínios com profundo impacto em salvar vidas
humanas, no fundo uma forma máxima e extrema de externalidade positiva de um
dado conhecimento, salvar ou não salvar vidas. Sabemos que o valor de uma
patente está fortemente dependente do investimento que tornou possível a
aplicação farmacêutica de uma determinada descoberta científica, não discutindo
por agora se essa descoberta científica resultou de investigação científica
fundamental concretizada com fundos públicos ou se, pelo contrário, foi toda
ela produto de um investimento privado. Mas o valor da patente depende também dos
rendimentos líquidos futuros gerados pelo novo medicamento. Não tenho elementos
para afirmar se o preço inicialmente cobrado pela GILEAD SCIENCES para o
tratamento com SOVALDI era ou não especulativo no sentido de querer precipitar a
curto prazo rendimentos futuros e com isso melhorar o fluxo de financiamento a
outras investigações em curso por parte da multinacional americana. António
Ferreira, administrador do Hospital São João, classificou a GILEAD SCIENCES de
fornecedor hostil, tendo inclusivamente levado o caso à Entidade Reguladora da
Saúde e à Provedoria de Justiça. A tão reclamada investigação e desenvolvimento
empresarial tem neste domínio o condicionante de poder colocar os sistemas públicos
de saúde perante um condicionamento ético e de alocação de recursos com implicações
políticas incalculáveis. Uma política de definição de preços de tratamento que
escape a uma rigorosa regulação que tem de ser necessariamente conduzida a nível
mundial submete os sistemas públicos, sobretudo os universais e gratuitos, a
pressões de racionamento que exigem uma longa maturação e avaliação éticas.
Neste caso, espanta e diz bem do estado de
decomposição em que a União Europeia se transformou que não tenha sido tentado (não
tenho evidências do contrário) um acordo global entre a Comissão Europeia e a
GILEAD, com o cálculo de preços de tratamento à paridade de poder de compra.
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