(O ressurgimento
da sempre controversa política fiscal, por muito que doa aos que pensaram ter enterrado Keynes no túmulo do
esquecimento prematuro)
A política fiscal sempre esteve no coração da controvérsia público-privado.
A manipulação da despesa pública e da carga fiscal (cobrança de impostos face
ao rendimento das famílias e das empresas) é vista por muitos dos seus
detratores como a manifestação mais impura da intervenção política, fonte de
todos os problemas, distorções, abusos, compadrios. Recordo que quando se
discute (e elege para tema de 2015) o ressurgimento da política fiscal essa
questão não se confunde com uma outra, a do peso da intervenção pública na
atividade económica. Por isso, o meu tema não invade o da mais recente e pueril
querela entre João Miguel Tavares e Alfredo Barroso, travada em torno da
pretensa e falsa viragem liberal do governo de Passos Coelho – Portas em termos
de peso da despesa pública na atividade económica nacional. Diga-se de passagem
que Alfredo Barroso se pôs a jeito, manejando chavões e não integrando números
cruciais, e por isso abriu a JMT um espaço de comando do debate que Barroso
terá dificuldades em inverter.
Quando falo do ressurgimento a contragosto de muita gente da política
fiscal, estou como é óbvio a situar-me nos instrumentos de gestão
macroeconómica dos países e dos blocos económicos. Ou seja, estou a falar do
papel da despesa pública e da tributação (aliviada ou reforçada) na
estabilização das economias, sobretudo como fator de combate ao desemprego, à
queda do produto potencial das economias, ao excesso de liquidez sem aplicação
produtiva, aos défices de investimento, em suma ao que abordámos no primeiro
tema do ano – a estagnação secular.
Os detratores do instrumento política fiscal têm-se organizado sobretudo em
torno de dois argumentos centrais: o efeito de crowding-out (destruição) do investimento privado e o forte
contributo da política fiscal para o agravamento da dívida pública, entendido
como todos sabem como fator bomba de relógio da instabilidade do sistema
financeiro. Ambos os argumentos já viveram melhores dias, pelo menos no que
concerne ao tempo atual e 2015 foi disso evidência. O efeito de crowding-out joga sobretudo com o efeito
que a mobilização de recursos financeiros para a política fiscal proactiva
provoca em termos de taxas de juro, penalizando por essa via o investimento
privado. Ora. em tempos de taxas de juro muito baixas, nulas ou mesmo
negativas, não se compreende como é que o fogo do crowding-out tem ambiente de combustão. O segundo argumento também
já viveu melhores dias. Primeiro, porque evidência bastante entrou pelos olhos
dentro dos cidadãos. O aperto fiscal dos processos de ajustamento (o contrário
da utilização da política fiscal como instrumento de gestão macroeconómica)
agravou a dívida dos países atingidos não o seu contrário. Segundo, porque
muita da instabilidade do sistema financeira teve raízes estritamente
financeiras (veja-se os casos da Espanha e da Irlanda) e não num problema de
dívida pública (mas antes de dívida das famílias e das empresas). E terceiro
porque, em termos académicos, Summers e DeLong (2012) se encarregaram de
demonstrar que o impacto positivo da despesa pública (sobretudo do investimento
público) pode mesmo compensar a longo prazo os custos do endividamento de hoje
para crescer mais amanhã e com isso pagar os sobrecustos do endividamento de
hoje.
Mas o enterro prematuro da política fiscal como instrumento de gestão
macroeconómica aconteceu induzido sobretudo por um ambiente de confiança
ilimitada (direi mesmo arrogante) nos poderes da política monetária para
estabilizar as economias. Essa confiança ilimitada, contrariada pelas
evidências do pós 2007-2008 e pelo regresso das ameaças deflacionárias e pelo
espectro da armadilha da liquidez, determinou que a política monetária fosse
obrigada a travestir-se de formulações mais heterodoxas para a sua gestão. Os
bancos centrais foram obrigados, também a contragosto dos mesmos detratores da
política fiscal, a realizar intervenções nada ortodoxas. Mario Draghi, a contas
com um mandato de BCE que não é mais do que a cristalização dessa arrogância do
“quero, posso e mando” da política monetária, viu-se e desejou-se para mostrar
aos mercados que faria as piruetas mais heterodoxas para salvar a estabilidade
do euro. E mais do que isso teve de confessar que o facto de não poder contar
com uma política fiscal proactiva e expansionista era no fundo uma grande
chatice.
(By Paul Krugman)
Os detratores da política fiscal não deixaram de andar por aí, sempre
prontos a denegrir os seus efeitos. E uma forma de o fazer é hipervalorizar os
estímulos fiscais realizados para poder depreciar os resultados atingidos. Krugman
tem-se destacado na denúncia dessa pérfida argumentação. A ele se deve essencialmente
o dimensionamento correto do chamado estímulo fiscal assumido pela governação
Obama no pós 2007-2008, contrariando assim a habilidade saloia republicana de
exagerar a dimensão do estímulo para melhor denegrir a amplitude dos resultados
atingidos.
Mas em meu entender a revelação que 2015 nos trouxe nesta matéria foi mais
subtil. Sabemos que os processos de ajustamento impostos pelos resgates das
dívidas soberanas (como o caso de Portugal) e aqueles que resultaram de
voluntarismo precoce na diminuição do endividamento (caso claríssimo do Reino
Unido) se traduziram em cortes substanciais de despesa pública. Tudo se passou
como se a política fiscal assumisse o papel do seu contrário. Pior do que
anular-se, a política fiscal atuou como corretor punitivo. Porém, na sequência
de processos de aliviamento fiscal que se iniciaram em 2014 e cujos efeitos
começaram a fazer-se sentir em 2015, foi possível apreender que uma grande
parte do crescimento que tais economias observaram se deveu tão só ao alívio da
pressão fiscal. Ou seja, ardilosamente e claramente ao serviço de estratégias eleitorais,
esse alívio fiscal depois de tanta pressão austeritária constituiu na prática um
estímulo fiscal, praticado precisamente pelos principais detratores. A vitória
dos conservadores no Reino Unido, embora largamente potenciada pela inépcia trabalhista,
e a tão artificialmente propagada saída limpa de Portugal deveram-se a esse estímulo
fiscal oculto. Com resultados para os seus autores. Pouco sustentados, é certo,
no caso de Portugal. Mas demonstrando com clareza que os multiplicadores da
despesa pública existem e que funcionam tanto para cima (aumentando a mesma ou
desacelerando cortes) como para baixo (com aumento de cortes), registando-se
neste último caso uma estranha e despudorada subavaliação do seu valor, como
aliás a máquina do FMI reconheceu para desespero da Comissão Europeia.
2015 foi assim o ano em que tudo nesta matéria se tornou mais claro. Como é
óbvio, e ao contrário dos argumentos tolos e impreparados dos detratores da política
fiscal, clamar pela relevância da política fiscal como forma de combater bloqueios
estruturais de procura global não dispensa o bom uso da despesa pública. Não é
incompatível com processos mais rigorosos de tomada de decisão política sobre
as escolhas públicas que devem protagonizar o estímulo fiscal. Mas 2015 deixou
nesta matéria algumas interrogações que tenho recorrentemente mencionado neste
blogue. A forte concentração do poder de punção fiscal em termos de impostos numa
massa reduzida de contribuintes tende com o tempo a gerar fadiga fiscal e essa
começa a ser evidente em alguns grupos de população, não propriamente milionária.
Renzi, em Itália, parece avançar para um orçamento com forte desagravamento
fiscal, que é uma forma de estímulo expansionista. A Comissão Europeia tem-se
torcido toda. Não sabemos ainda se vai vingar ou se, pelo contrário, ditará em
Itália um novo ciclo de agravamento de défices públicos. Por esse prisma, a política
fiscal acaba 2015 interrogada. O que significa matéria para seguir com atenção.
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