quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

E O TERCEIRO TEMA DE 2015 É …




(O ressurgimento da sempre controversa política fiscal, por muito que doa aos que pensaram ter enterrado Keynes no túmulo do esquecimento prematuro)

A política fiscal sempre esteve no coração da controvérsia público-privado. A manipulação da despesa pública e da carga fiscal (cobrança de impostos face ao rendimento das famílias e das empresas) é vista por muitos dos seus detratores como a manifestação mais impura da intervenção política, fonte de todos os problemas, distorções, abusos, compadrios. Recordo que quando se discute (e elege para tema de 2015) o ressurgimento da política fiscal essa questão não se confunde com uma outra, a do peso da intervenção pública na atividade económica. Por isso, o meu tema não invade o da mais recente e pueril querela entre João Miguel Tavares e Alfredo Barroso, travada em torno da pretensa e falsa viragem liberal do governo de Passos Coelho – Portas em termos de peso da despesa pública na atividade económica nacional. Diga-se de passagem que Alfredo Barroso se pôs a jeito, manejando chavões e não integrando números cruciais, e por isso abriu a JMT um espaço de comando do debate que Barroso terá dificuldades em inverter.

Quando falo do ressurgimento a contragosto de muita gente da política fiscal, estou como é óbvio a situar-me nos instrumentos de gestão macroeconómica dos países e dos blocos económicos. Ou seja, estou a falar do papel da despesa pública e da tributação (aliviada ou reforçada) na estabilização das economias, sobretudo como fator de combate ao desemprego, à queda do produto potencial das economias, ao excesso de liquidez sem aplicação produtiva, aos défices de investimento, em suma ao que abordámos no primeiro tema do ano – a estagnação secular.

Os detratores do instrumento política fiscal têm-se organizado sobretudo em torno de dois argumentos centrais: o efeito de crowding-out (destruição) do investimento privado e o forte contributo da política fiscal para o agravamento da dívida pública, entendido como todos sabem como fator bomba de relógio da instabilidade do sistema financeiro. Ambos os argumentos já viveram melhores dias, pelo menos no que concerne ao tempo atual e 2015 foi disso evidência. O efeito de crowding-out joga sobretudo com o efeito que a mobilização de recursos financeiros para a política fiscal proactiva provoca em termos de taxas de juro, penalizando por essa via o investimento privado. Ora. em tempos de taxas de juro muito baixas, nulas ou mesmo negativas, não se compreende como é que o fogo do crowding-out tem ambiente de combustão. O segundo argumento também já viveu melhores dias. Primeiro, porque evidência bastante entrou pelos olhos dentro dos cidadãos. O aperto fiscal dos processos de ajustamento (o contrário da utilização da política fiscal como instrumento de gestão macroeconómica) agravou a dívida dos países atingidos não o seu contrário. Segundo, porque muita da instabilidade do sistema financeira teve raízes estritamente financeiras (veja-se os casos da Espanha e da Irlanda) e não num problema de dívida pública (mas antes de dívida das famílias e das empresas). E terceiro porque, em termos académicos, Summers e DeLong (2012) se encarregaram de demonstrar que o impacto positivo da despesa pública (sobretudo do investimento público) pode mesmo compensar a longo prazo os custos do endividamento de hoje para crescer mais amanhã e com isso pagar os sobrecustos do endividamento de hoje.

Mas o enterro prematuro da política fiscal como instrumento de gestão macroeconómica aconteceu induzido sobretudo por um ambiente de confiança ilimitada (direi mesmo arrogante) nos poderes da política monetária para estabilizar as economias. Essa confiança ilimitada, contrariada pelas evidências do pós 2007-2008 e pelo regresso das ameaças deflacionárias e pelo espectro da armadilha da liquidez, determinou que a política monetária fosse obrigada a travestir-se de formulações mais heterodoxas para a sua gestão. Os bancos centrais foram obrigados, também a contragosto dos mesmos detratores da política fiscal, a realizar intervenções nada ortodoxas. Mario Draghi, a contas com um mandato de BCE que não é mais do que a cristalização dessa arrogância do “quero, posso e mando” da política monetária, viu-se e desejou-se para mostrar aos mercados que faria as piruetas mais heterodoxas para salvar a estabilidade do euro. E mais do que isso teve de confessar que o facto de não poder contar com uma política fiscal proactiva e expansionista era no fundo uma grande chatice.

(By Paul Krugman)
Os detratores da política fiscal não deixaram de andar por aí, sempre prontos a denegrir os seus efeitos. E uma forma de o fazer é hipervalorizar os estímulos fiscais realizados para poder depreciar os resultados atingidos. Krugman tem-se destacado na denúncia dessa pérfida argumentação. A ele se deve essencialmente o dimensionamento correto do chamado estímulo fiscal assumido pela governação Obama no pós 2007-2008, contrariando assim a habilidade saloia republicana de exagerar a dimensão do estímulo para melhor denegrir a amplitude dos resultados atingidos.

Mas em meu entender a revelação que 2015 nos trouxe nesta matéria foi mais subtil. Sabemos que os processos de ajustamento impostos pelos resgates das dívidas soberanas (como o caso de Portugal) e aqueles que resultaram de voluntarismo precoce na diminuição do endividamento (caso claríssimo do Reino Unido) se traduziram em cortes substanciais de despesa pública. Tudo se passou como se a política fiscal assumisse o papel do seu contrário. Pior do que anular-se, a política fiscal atuou como corretor punitivo. Porém, na sequência de processos de aliviamento fiscal que se iniciaram em 2014 e cujos efeitos começaram a fazer-se sentir em 2015, foi possível apreender que uma grande parte do crescimento que tais economias observaram se deveu tão só ao alívio da pressão fiscal. Ou seja, ardilosamente e claramente ao serviço de estratégias eleitorais, esse alívio fiscal depois de tanta pressão austeritária constituiu na prática um estímulo fiscal, praticado precisamente pelos principais detratores. A vitória dos conservadores no Reino Unido, embora largamente potenciada pela inépcia trabalhista, e a tão artificialmente propagada saída limpa de Portugal deveram-se a esse estímulo fiscal oculto. Com resultados para os seus autores. Pouco sustentados, é certo, no caso de Portugal. Mas demonstrando com clareza que os multiplicadores da despesa pública existem e que funcionam tanto para cima (aumentando a mesma ou desacelerando cortes) como para baixo (com aumento de cortes), registando-se neste último caso uma estranha e despudorada subavaliação do seu valor, como aliás a máquina do FMI reconheceu para desespero da Comissão Europeia.

2015 foi assim o ano em que tudo nesta matéria se tornou mais claro. Como é óbvio, e ao contrário dos argumentos tolos e impreparados dos detratores da política fiscal, clamar pela relevância da política fiscal como forma de combater bloqueios estruturais de procura global não dispensa o bom uso da despesa pública. Não é incompatível com processos mais rigorosos de tomada de decisão política sobre as escolhas públicas que devem protagonizar o estímulo fiscal. Mas 2015 deixou nesta matéria algumas interrogações que tenho recorrentemente mencionado neste blogue. A forte concentração do poder de punção fiscal em termos de impostos numa massa reduzida de contribuintes tende com o tempo a gerar fadiga fiscal e essa começa a ser evidente em alguns grupos de população, não propriamente milionária. Renzi, em Itália, parece avançar para um orçamento com forte desagravamento fiscal, que é uma forma de estímulo expansionista. A Comissão Europeia tem-se torcido toda. Não sabemos ainda se vai vingar ou se, pelo contrário, ditará em Itália um novo ciclo de agravamento de défices públicos. Por esse prisma, a política fiscal acaba 2015 interrogada. O que significa matéria para seguir com atenção.

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