(A desigualdade como revelação da incapacidade distributiva
do capitalismo na sua formulação atual)
A economia enquanto projeto inacabado e frágil de ciência tem destas coisas.
O tema da desigualdade viu várias obras de referência serem publicadas antes da
erupção provocada pelo “Capital no século XXI” de Thomas Piketty em 2013. A
obra de Stiglitz “The Price of Inequality”
(2012, W.W. Norton & Company), os estudos de Tony Atkinson e do próprio
Piketty de 2007, “Top Incomes over the 20th century” (Oxford),
toda a vasta produção de Branko Milanovic sobre o tema da desigualdade mundial,
principalmente Worlds Apart (2005, Princeton
University Press) e The Haves and the Have Nots (2011,
Basic Books) são algumas das obras essenciais sobre esse tema. Porém, nenhuma
dessas obras logrou atingir a disseminação mediática que o Capital
de Piketty suscitou. Praticamente ninguém ficou indiferente ao impacto de uma
obra, publicada inicialmente em francês, coisa rara, e assinada por um economista
relativamente jovem, que se expressava num inglês bastante afrancesado. Algo que
soava a algo de estranho, tão habituados estávamos ao accent americano dos economistas mais mediatizados. Pois o ano de
2015 pode considerar-se um ano de réplicas do debate suscitado pela obra de Piketty
e foi neste ano que agora acaba que foram publicadas duas obras que podem
considerar-se, na sua autonomia e individualidade de posições, o melhor tributo
ao tema e à extensão de debate suscitado pelos contributos de Piketty: Joseph
Stiglitz, The Great Divide (Allen Lane –
Penguin Books, 2015) e Anthony Atkinson, Inequality (Oxford, 2015).
Podemos admitir que Piketty preparou de modo arguto e consistente o seu
aparecimento na mediatização de uma obra de economia, coisa também relativamente
rara. O seu trabalho regular com Tony Atkinson (uma espécie de pai dos temas da
desigualdade) e as suas permanências nos Estados Unidos (colaboração frutuosa
com E. Saez) projetaram o seu trabalho entre pares e a publicação do Capital no século XXI foi apenas a cereja
no topo de um bolo confecionado a rigor. Posso admitir que essa estratégia foi
preciosa para viabilizar o fenómeno da disseminação. Mas tenho para mim que o
essencial do “dinamite cerebral” provocado pela obra de Piketty foi ela ter
aparecido no momento certo de evolução do capitalismo nas principais economias
avançadas. Claro que para o êxito e efeito-surpresa da obra muito contou o
facto de Piketty trabalhar com categorias económicas usualmente utilizadas pelo
mainstream económico, designadamente
as categorias económicas a que recorremos na teoria do crescimento económico. É
certo que a transposição para o mundo da mensuração estatística dessas
categorias económicas suscita problemas complexos, a que o próprio Piketty dedica
um trabalho insano de estabelecimento de correspondências o mais rigorosas possível
entre as categorias teóricas e os seus equivalentes (mais próximos ou mais remotos)
estatísticos. Piketty cometeu a proeza de introduzir o tema da desigualdade no mainstream económico, usando
praticamente as mesmas categorias que este utiliza e isso merece um respeituoso
chapeau.
2015 foi também o ano em que Piketty teve a coragem de ocupar o palco da universidade
de Chicago em dois eventos no passado mês de novembro (ver link aqui). Está documentado,
sobretudo no debate (moderado pelo Nobel James Heckman) com os economistas de
Chicago Kevin Murphy e Steve Durlauf, o enorme esforço, mais ou menos
disfarçado com desdém e arrogância, do universo de Chicago para menorizar o
contributo de Piketty e tentar recentrar o tema da desigualdade na velha questão
do “skill bias”, através da qual a
desigualdade é afastada da força dos poderosos para se ancorar nos malefícios da
tecnologia. A presença de Piketty em Chicago mostra bem como o debate em
economia está envenenado pelo poder académico, largamente discricionário e autoreprodutível.
Mas esconder o conflito em torno do tema da desigualdade equivale a varrer
lixo para debaixo do tapete. Uma massa imensa de economistas faz a sua aprendizagem
sob o pressuposto de que os temas da distribuição do rendimento são comandados
pela questão da tecnologia. Se a tecnologia condiciona a evolução da produtividade
marginal do trabalho e do capital e se os fatores de produção capital e trabalho
forem remunerados à sua produtividade marginal a desigualdade eclipsa-se. Claro
que muitos economistas não engoliram este passo de mágica e consideram que a
distribuição de rendimento, pelo menos a distribuição funcional entre salários
e lucros, é fruto da barganha social e tem dois limites: a mais baixa taxa de
lucro que é aceite pelos proprietários do capital para exercer a sua atividade e
a mais baixa de salário imposta pelas condições de vida dos trabalhadores e
pela posição das organizações sindicais.
As réplicas produzidas em 2015 permitiram ir além dos fatores responsáveis pelo
acentuar da desigualdade que a obra de Piketty trouxe para a discussão e que me
dispenso agora de referir, pois são matéria de 2013 e 2014. Entre esses fatores
explicativos novos está o regresso às relações de força no mercado de trabalho a
que o mainstream económico deseja
furtar-se. A economia portuguesa do período do ajustamento que conduziu ao tal
embuste da saída limpa colocou bem em evidência o peso dessa relação de forças.
Os sindicatos podem ser acusados de muita coisa, de privilegiar a defesa dos
que têm emprego face aos que o não têm, de rigidez, etc. Mas embora a economia
americana não seja facilmente objeto de extensão a outras paragens, o ano de 2015
trouxe à luz da impressão importantes resultados sobre o peso explicativo que a
não sindicalização traz para o agravamento da desigualdade (ver links aqui e aqui).
Outras domínios de explicação do agravamento da desigualdade o ano de 2015
nos trouxe. Entre eles, a evolução da própria desigualdade no espectro de salários,
sobretudo com a evolução das remunerações de topo entre CEO e outros quadros. Mas
também a questão do capitalismo rentista (ver aqui o mais recente contributo de
Dean Baker sobre a matéria) e a própria sugestão de que o quantitative easing dos bancos centrais tende também a incrementar
a desigualdade são temas que vieram enriquecer o debate.
Mas de toda esta animação em torno do tema da desigualdade é seguro voltar
aos basics do contra-a-corrente. E
esses apontam para o processo da conflitualidade social e das relações de força
que têm caído fortemente para o lado das forças financeiras e do capital em
geral. Mas convém não perder de vista que um capitalismo incapaz de redistribuir
assinala uma sentença de … estagnação secular. E por aqui se vê que os dois primeiros
temas do ano se interligam. 2015 colocou-o bem em evidência.
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