terça-feira, 29 de dezembro de 2015

OS TEMAS DO ANO - II




(A desigualdade como revelação da incapacidade distributiva do capitalismo na sua formulação atual)

A economia enquanto projeto inacabado e frágil de ciência tem destas coisas. O tema da desigualdade viu várias obras de referência serem publicadas antes da erupção provocada pelo “Capital no século XXI” de Thomas Piketty em 2013. A obra de Stiglitz “The Price of Inequality” (2012, W.W. Norton & Company), os estudos de Tony Atkinson e do próprio Piketty de 2007, “Top Incomes over the 20th century” (Oxford), toda a vasta produção de Branko Milanovic sobre o tema da desigualdade mundial, principalmente Worlds Apart (2005, Princeton University Press) e The Haves and the Have Nots (2011, Basic Books) são algumas das obras essenciais sobre esse tema. Porém, nenhuma dessas obras logrou atingir a disseminação mediática que o Capital de Piketty suscitou. Praticamente ninguém ficou indiferente ao impacto de uma obra, publicada inicialmente em francês, coisa rara, e assinada por um economista relativamente jovem, que se expressava num inglês bastante afrancesado. Algo que soava a algo de estranho, tão habituados estávamos ao accent americano dos economistas mais mediatizados. Pois o ano de 2015 pode considerar-se um ano de réplicas do debate suscitado pela obra de Piketty e foi neste ano que agora acaba que foram publicadas duas obras que podem considerar-se, na sua autonomia e individualidade de posições, o melhor tributo ao tema e à extensão de debate suscitado pelos contributos de Piketty: Joseph Stiglitz, The Great Divide (Allen Lane – Penguin Books, 2015) e Anthony Atkinson, Inequality (Oxford, 2015).

Podemos admitir que Piketty preparou de modo arguto e consistente o seu aparecimento na mediatização de uma obra de economia, coisa também relativamente rara. O seu trabalho regular com Tony Atkinson (uma espécie de pai dos temas da desigualdade) e as suas permanências nos Estados Unidos (colaboração frutuosa com E. Saez) projetaram o seu trabalho entre pares e a publicação do Capital no século XXI foi apenas a cereja no topo de um bolo confecionado a rigor. Posso admitir que essa estratégia foi preciosa para viabilizar o fenómeno da disseminação. Mas tenho para mim que o essencial do “dinamite cerebral” provocado pela obra de Piketty foi ela ter aparecido no momento certo de evolução do capitalismo nas principais economias avançadas. Claro que para o êxito e efeito-surpresa da obra muito contou o facto de Piketty trabalhar com categorias económicas usualmente utilizadas pelo mainstream económico, designadamente as categorias económicas a que recorremos na teoria do crescimento económico. É certo que a transposição para o mundo da mensuração estatística dessas categorias económicas suscita problemas complexos, a que o próprio Piketty dedica um trabalho insano de estabelecimento de correspondências o mais rigorosas possível entre as categorias teóricas e os seus equivalentes (mais próximos ou mais remotos) estatísticos. Piketty cometeu a proeza de introduzir o tema da desigualdade no mainstream económico, usando praticamente as mesmas categorias que este utiliza e isso merece um respeituoso chapeau.

2015 foi também o ano em que Piketty teve a coragem de ocupar o palco da universidade de Chicago em dois eventos no passado mês de novembro (ver link aqui). Está documentado, sobretudo no debate (moderado pelo Nobel James Heckman) com os economistas de Chicago Kevin Murphy e Steve Durlauf, o enorme esforço, mais ou menos disfarçado com desdém e arrogância, do universo de Chicago para menorizar o contributo de Piketty e tentar recentrar o tema da desigualdade na velha questão do “skill bias”, através da qual a desigualdade é afastada da força dos poderosos para se ancorar nos malefícios da tecnologia. A presença de Piketty em Chicago mostra bem como o debate em economia está envenenado pelo poder académico, largamente discricionário e autoreprodutível.

Mas esconder o conflito em torno do tema da desigualdade equivale a varrer lixo para debaixo do tapete. Uma massa imensa de economistas faz a sua aprendizagem sob o pressuposto de que os temas da distribuição do rendimento são comandados pela questão da tecnologia. Se a tecnologia condiciona a evolução da produtividade marginal do trabalho e do capital e se os fatores de produção capital e trabalho forem remunerados à sua produtividade marginal a desigualdade eclipsa-se. Claro que muitos economistas não engoliram este passo de mágica e consideram que a distribuição de rendimento, pelo menos a distribuição funcional entre salários e lucros, é fruto da barganha social e tem dois limites: a mais baixa taxa de lucro que é aceite pelos proprietários do capital para exercer a sua atividade e a mais baixa de salário imposta pelas condições de vida dos trabalhadores e pela posição das organizações sindicais.

As réplicas produzidas em 2015 permitiram ir além dos fatores responsáveis pelo acentuar da desigualdade que a obra de Piketty trouxe para a discussão e que me dispenso agora de referir, pois são matéria de 2013 e 2014. Entre esses fatores explicativos novos está o regresso às relações de força no mercado de trabalho a que o mainstream económico deseja furtar-se. A economia portuguesa do período do ajustamento que conduziu ao tal embuste da saída limpa colocou bem em evidência o peso dessa relação de forças. Os sindicatos podem ser acusados de muita coisa, de privilegiar a defesa dos que têm emprego face aos que o não têm, de rigidez, etc. Mas embora a economia americana não seja facilmente objeto de extensão a outras paragens, o ano de 2015 trouxe à luz da impressão importantes resultados sobre o peso explicativo que a não sindicalização traz para o agravamento da desigualdade (ver links aqui e aqui).

Outras domínios de explicação do agravamento da desigualdade o ano de 2015 nos trouxe. Entre eles, a evolução da própria desigualdade no espectro de salários, sobretudo com a evolução das remunerações de topo entre CEO e outros quadros. Mas também a questão do capitalismo rentista (ver aqui o mais recente contributo de Dean Baker sobre a matéria) e a própria sugestão de que o quantitative easing dos bancos centrais tende também a incrementar a desigualdade são temas que vieram enriquecer o debate.

Mas de toda esta animação em torno do tema da desigualdade é seguro voltar aos basics do contra-a-corrente. E esses apontam para o processo da conflitualidade social e das relações de força que têm caído fortemente para o lado das forças financeiras e do capital em geral. Mas convém não perder de vista que um capitalismo incapaz de redistribuir assinala uma sentença de … estagnação secular. E por aqui se vê que os dois primeiros temas do ano se interligam. 2015 colocou-o bem em evidência.

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