(Reflexões em torno de uma proposta recente do think-tank Centre for
European Reform sobre o impasse em que a progressão do modelo europeu está
mergulhada)
Não, não se trata de um “remake”
de uma velha canção da Tina Turner (We
don’t need other heroe) adaptada ao impasse em que a progressão do modelo
europeu está já há algum tempo mergulhada. A reflexão surge porque não têm abundado
os contributos de reflexão para a procura de saídas do impasse europeu. A base para
o comentário de hoje é um contributo recentíssimo, datado de dezembro, proveniente
do think-tank Centre for European Reform, mais
propriamente assinado pelo seu economista-chefe Christian Odendhal.
O que me atraiu neste contributo é o facto dele explorar uma obra que faz
parte das minhas reflexões sobre a encruzilhada de aprofundamento em que a
globalização se encontra e matéria central do meu curso ou lições dispersas
sobre este tema. A obra é The
Globalization Paradox de Dani Rodrik e a sua invocação prende-se
essencialmente com o chamado trilema de Rodrik, à luz do qual o economista
turco-americano defende a tese de que a globalização, tal como está
configurada, não consegue atingir simultaneamente as três realizações de aprofundar
a integração económica mundial, respeitar as aquisições da democracia política
e preservar o Estado-nação. Curiosamente,
no curso e nas lições dispersas sobre globalização, aplico em regra o trilema
de Rodrik ao tema da integração europeia e é por isso com agrado que vejo o Centre for
European Reform evoluir nessa direção.
O impasse (degenerativo, diga-se) do projeto europeu consubstancia-se muito
claramente numa contradição até agora insanável. O projeto Euro defronta-se
hoje com enormes vulnerabilidades que resultam, em grande medida, da
necessidade de maior integração em matérias vitais para a estabilidade dos seus
mecanismos centrais, como é o caso por exemplo da União Bancária e de toda a
regulação do sistema financeiro. Mas, a um outro nível, no plano político, o
projeto europeu enfrenta uma crescente animosidade e oposição a essa integração,
podendo dizer-se que o Estado-nação ainda respira e sabemos como os meandros e instrumentos
da política económica ainda mantêm com o nível nacional uma profunda imbricação.
Como é sabido, o mandato do BCE foi ao tempo claramente influenciado pela
ortodoxia económica e financeira então reinante. Se a política monetária dos
estados-membros da zona euro desapareceu para dar lugar à ação do BCE, a
verdade é que dada a incapacidade do mandato do BCE de responder à estabilização
do produto e do desemprego por via monetária, ela tem de ser fortemente
complementada por políticas fiscais que são claramente nacionais, dada a irrelevância
do orçamento europeu em termos de recursos mobilizados. Se a propósito de intervenção
monetária do BCE é comum falar-se de bazucas, então a política fiscal europeia
não é mais do que uma frágil pistola de carnaval.
Na proposta do Centre for European
Reform, ressalta sobretudo a tentativa de formulação de
um modelo de governação que critica parcelarmente o chamado Relatório dos Cinco
Presidentes, o último documento de reflexão sobre o modelo europeu que chegou
ao debate público. A proposta está alinhada pela tentativa de aplicação
seletiva de processos de integração e aprofundamento económico e financeiro de âmbito
europeu, libertando processos para abrir espaço efetivo à influência do
Estado-nação e dos estados-membros. Numa palavra, um misto de integração e
aprofundamento e de devolução, na prática uma espécie de meio-termo no trilema
de Rodrik, adaptado à construção europeia: o aprofundamento económico, a preservação
de alguns domínios de intervenção do Estado-nação e a preservação de mecanismo democráticos,
seja pela maior monitorização e decisão dos parlamentos nacionais, seja pelo aprofundamento
do papel do Parlamento Europeu.
Essa procura de equilíbrio entre as necessidades seletivas de integração e
aprofundamento dos mecanismos de decisão transnacionais e a aplicação seletiva
dos mecanismos nacionais não é seguramente a via dos diretórios europeus que
estiveram na base dos ajustamentos preconizados no âmbito das crises das dívidas
soberanas. A proposta do Centre for European Reform fala antes de
processos de delegação ascendente de responsabilidades (imagino que democraticamente
validados a nível nacional) em matérias em que a integração é crucial para
reduzir vulnerabilidades e de atribuição às democracias nacionais da tarefa de
decidir sobre as reformas estruturais. Esta segunda proposta é talvez aquela
que mereça acompanhamento e reflexão mais sérios no futuro, pois adapta-se em
meu entender ao que António Costa parece querer das instituições europeias para
resolver a questão nacional. Em primeiro lugar, porque o documento do think-tank
parece, embora timidamente, rejeitar a retórica das reformas estruturais
entendidas como criação de condições de liberalização, como o diretório europeu
tem entendido. Em segundo lugar, porque remeter essas decisões para o plano
nacional, pressupõe uma maior fiscalização democrática e parlamentar das opções
que vão sendo tomadas sob o manto influenciador dos interesses europeus.
Sabemos que as propostas reformistas e que se baseiam em procuras de equilíbrio
com margens de manobra muito estreitas nem sempre conseguem encontrar o seu
caminho crítico. Frequentemente acabam devoradas e atropeladas pela força das
circunstâncias políticas. Resta saber se no caso europeu o processo não é já de
não retorno em termos de dissolução do projeto europeu. Que as necessidades de
integração económica e financeira são cruciais para minimizar as fragilidades
do edifício do Euro parece corresponder a algo de inquestionável. Mas será que há
haverá lucidez política para diferenciar rigorosamente as matérias que podem
continuar a ser matéria de decisão nacional? Será que haverá no projeto europeu
elasticidade e flexibilidade suficientes para compatibilizar decisões nacionais
diversas sobre o tema das reformas estruturais? Não tenho respostas para estas
interrogações. Mas tenho a certeza de que esta é matéria a que o governo de António
Costa deverá atribuir atenção redobrada nos seus contactos com Bruxelas e com
toda a sua “entourage” de pensamento em que os think-tanks como o Centre for
European Reform se situam.
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