(O quarto tema do
ano é, por estranho que o
possa parecer, o próprio mundo, instável, perigoso, violento, dissipador dos
frutos do progresso)
Em 2015, tivemos um mundo que, cada vez mais, menos se recomenda. Mas a
instabilidade, a perigosidade, a barbárie, a violência não emergiram miraculosamente
neste ano. Elas são claramente o resultado de ventos e combustões que decorrem
de dinâmicas passadas, de trágicas ofensivas políticas mal dimensionadas e
avaliadas, de tensões nalguns casos milenárias, da progressiva e perigosa interação
entre o político e o económico. 2015 trouxe sobretudo o risco da vulgarização e
banalização da barbárie, só esporadicamente provocadora da indignação geral,
seja por um corpo indefeso que dá à costa, seja pela aterradora violência que a
informação televisa nos transmite. A banalização da barbárie, em parte induzida
pela frequência com que se manifesta, é a fórmula mais aberrante da violência,
porque vai de par com a indiferença.
Mas 2015 trouxe também a revelação de regularidades que teimamos em não interpretar
como fenómenos recorrentes, exigindo outros modelos de intervenção para a
superar.
Uma das regularidades mais assustadoras é a progressiva perceção de que a
instauração da democracia em modelos autocráticos, sejam eles de matriz religiosa,
de origem oligárquica, tribal ou simplesmente de concentração autoritária de
poder económico, tende a gerar processos de transição que a democracia ela própria
não consegue gerir. O modo como pintámos de cores agradáveis à vista as transições
árabes ou a emergência de movimentos rebeldes pró-liberdade em países no passado
de ascendência soviética (veja-se o impasse na Ucrânia) ajudou a gerar transições
ingovernáveis, nas quais a acumulação primitiva de capital tornada necessária
pelo funcionamento da economia de mercado em democracia se mostrou incompatível
com essa mesma democracia. Essas transições frustram os militantes espontâneos pela
democracia, por mais atentos que devamos estar às diferentes configurações que
ela pode assumir em tais contextos político-institucionais. São, por sua vez, o
espaço de combustão propício para emergências inorgânicas da ilegalidade e mais
do que tudo constituem um fator em muitos casos, irreversíveis para a duração
de uma ou duas gerações, de geração de processos de desestruturação massiva
dessas sociedades. Já há muito tempo o mundo compreendeu que a Europa caminha a
passos largos para a irrelevância como fonte de intervenção militar, sobretudo
quando também já se percebeu que os EUA não arriscarão a curto-médio prazo
intervenções militares significativas com homens em terra. Os EUA parecem neste
momento regressar ao medo da agressão nos seus omo o tempo passa!) e que
regressa embora num contexto bastante mais securitário.
2015 foi tragicamente o ano da globalização das pessoas, que sempre foi
apontada como a manifestação mais recuada da globalização face às suas congéneres
globalização económica e financeira. A erupção descontrolada dos fluxos de refugiados
embate com um mundo em que a memória histórica está reduzida às expressões mais
ínfimas e com essa perda de memória a ausência de condições para uma perceção
minimamente solidária da necessidade de gerir os fluxos de refugiados e pedidos
de auxílio e exílio. Já por repetidas vezes anotei aqui o efeito tenebroso do
desaparecimento progressivo dos homens e mulheres que viveram tempos convulsos
mas solidários de outros tempos. Por mais paradoxal que isso possa parecer em
tempos de digital, com reserva praticamente infinita de armazenamento de memórias,
o desaparecimento dos que podiam expressar física e pessoalmente o seu testemunho.
É isso que está a acontecer, particularmente na Europa.
2015 trouxe-nos a perceção de que não compreendemos bem todas essas transições,
das mais violentas e desreguladas até à mais surpreendente evolução da
sociedade iraniana. Nesta última, onde o poder autoritário de matriz religiosa
continua a exercer a sua influência, continua a existir uma massa de gente para
lá daquelas massivas concentrações de gente vestida de preto que tanto impressionaram
o ocidente quando a revolução iraniana irrompeu com violência. Tenho a intuição
que daqui a alguns anos a transição iraniana será generalizadamente estudada.
2015 trouxe-nos a confirmação de um mundo que não se recomenda. E o pior é
que muito provavelmente 2016 não nos trará nada de substancialmente diferente.
Cuidem-se e boas entradas em 2016.
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