(Será que a história económica nos pode ajudar?)
Estranha é a sensação que nos provocam estes resultados entre a primeira e
a segunda volta das eleições regionais em França. De surpresa é que essa sensação
não é. A ascensão da FN tem sido gradual, mas consistente. Marine Le Pen é bem
mais hábil do que o seu truculento pai. Foi ocultando as dimensões mais aberrantes
e provocatórias do seu discurso e das suas propostas. Assumiu progressivamente atitudes
de quem pode tomar e exercer o poder. Foi jogando com a deterioração
progressiva da situação económica e social francesa. Limitou-se a explorar a
inabilidade e incompetência dos diretórios europeus, perdidos sem projeto e sem
qualquer mensagem de futuro para navegar em transição de águas difíceis e
revoltas. A passagem de algum eleitorado operário para o espaço de influência e
captação da FN estava aí a revelar-se e bastava ouvir alguns dos nossos
emigrantes em França para compreender essa passagem. Algumas das votações
atingidas pelos representantes da FN, como por exemplo em Calais no norte da
França, só são compreensíveis num estádio de grande penetração da FN em eleitorados
tradicionalmente socialistas ou até comunistas.
A chamada bazuca da “barrage républicaine”
que Jospin acionou anteriormente e com êxito desistindo em favor de Chirac
corre hoje o risco de, ao ser repetida por Valls e Hollande, de ser mera pólvora
seca. Primeiro, porque entre o republicano Chirac com todas as suas derivas e o
troca-tintas e pequenino Sarkozy há uma diferença incomensurável e, para o
eleitor mediano, na opção entre Marine e o troca-tintas não é seguro que prevaleça
(onde ela já vai!) a ideologia republicana, pois ela está tão degradada no personagem
de direita. Segundo, porque a FN de hoje não é seguramente a que ontem se
apresentava ao eleitorado. Terceiro, porque o conjunto de acontecimentos e
vulnerabilidades que varreram a França nos últimos tempos conduz parte do
eleitorado, embora apocalipticamente, à FN.
Por isso, a sensação não é de surpresa. É antes de quem está ao pé do
abismo e sabe que é tudo uma questão de tempo até nele cair.
De toda esta dinâmica de acontecimentos e embora não esquecendo a dimensão
do terrorismo no que ele tem de mais terrível, ou seja construído a partir de
dentro da nação francesa, a queda dos socialistas franceses é a que mais me
impressiona. Uma análise objetiva e distanciada da chegada ao poder dos socialistas
franceses traz-nos um zigue-zague
desprovido de rumo e de sentido. Entre o programa com que o PSF se apresentou
ao eleitorado e o seduziu e a fórmula atual que resulta da convivência entre
François Hollande e Manuel Valls não há qualquer trajetória de coerência. E
mesmo entre o discurso do Presidente e do seu primeiro-ministro só na resposta
oficial ao golpe do terrorismo encontramos alguma consistência.
Neste mergulho para o abismo e para a irrelevância dos socialistas
franceses estão questões de natureza estrutural que não podem ser esquecidas. A
França é sem dúvida o país europeu em que o socialismo democrático está mais à
prova. O modelo de Estado e de economia da França é fortemente impactado pela
globalização desde há longo tempo. Assobiando para o lado, mantendo prerrogativas
de modelo social para as quais a economia francesa dá mostras de não poder
continuar, os franceses perderam há muito a guerra da competitividade sem adulterar
distributivamente as condições de criação e de repartição do rendimento. A própria
passagem da direita de Sarkozy pelo poder beliscou pouco a rigidez do modelo
económico francês, conseguindo que a consolidação orçamental tocasse pouco em algumas
das prerrogativas que os franceses conquistaram em tempos passados. Nos
governos de Hollande não se vislumbrou qualquer capacidade de agilizar a economia
francesa sem degradar decisivamente as circunstâncias redistributivas.
Este forte constrangimento estrutural junta-se hoje a uma avalanche de
outros problemas, o terrorismo de dentro e de fora, a pressão da questão dos
refugiados, a marginalização efetiva de parcelas significativas da população
jovem filha de emigrantes, a psicose securitária. O cocktail é apocalíptico e
favorece claramente a FN que pode limitar-se a jogar com a velocidade dos
acontecimentos. A própria União Europeia entrará ela própria no abismo se tiver
à mesa uma potencial interlocução política da FN que a pretende torpedear. Não é
percetível se os diretórios europeus já compreenderam o que os espera num cenário
de chegada da FN ao poder.
Nesta avalanche de factos que precipita a irrelevância do PSF, a história
económica tem algo a dizer, embora com uma matéria nebulosa de relações de causa
e efeito. Krugman alerta para essa questão comparando o “aftermath” da Grande Depressão de 1929-1930 e a Grande Recessão de 2007-2008. E essa comparação não é
feita através do confronto dos custos sociais de uma e outra, que continuam a
penalizar os eventos dos anos 30. A comparação é feita através do número de
anos necessários para consolidar a recuperação. O gráfico que abre este post e
que já apareceu neste blogue sob diversas formas é esclarecedor. 3 anos depois
da Grande Depressão de 30 a economia estava a recuperar em termos de rendimento
per capita e seis anos e meio depois atingia o rendimento per capita do início
da crise. Na Grande Recessão de 2007-2008, oito anos depois não se vislumbra
uma sólida recuperação e ainda não foi atingido o valor de referência.
Barry Eichengreen, Kevin O’Rourke e Alan Bromhead exploraram em 2012 os efeitos
da recessão económica de 1930 sobre a ascensão da extrema-direita. Talvez fosse
relevante ler esse contributo. A história costuma ser boa conselheira.
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