sábado, 19 de dezembro de 2015

A TRANSMISSÃO DA ASNEIRA




(Ainda e sempre a questão dos mecanismos de transmissão do conhecimento que tornam possível a consagração das asneiras, da economia à política económica)

Não escondo que tenho um certo fascínio pelo estudo das razões que levam uma asneira em política económica a perpetuar-se para além do razoável. Sabemos hoje que essa questão não anda isolada dos mecanismos que disseminam o conhecimento em economia, mais propriamente do modo como a teoria económica ou economia política em geral se transmite à decisão política, isto é, à política económica.

A questão tem sido debatida nos últimos tempos por economistas de grande prestígio, o que sugere a importância do tema. Um dos focos desse debate consiste em saber se é um problema dos economistas que não são suficientemente hábeis em dotar-se e mobilizar os modelos mais pertinentes ou se, pelo contrário, é antes um problema das ideias económicas, viciadas, que se perpetuam por mecanismos que é possível estudar e que justificam os erros de política económica.

Dani Rodrik publicou recentemente uma obra, “Economics Rules – The Rights and wrongs of the dismal science”(W.W. Norton & Company), que assume a primeira daquelas posições. Os modelos constituem segundo Rodrik a carta de alforria da teoria económica enquanto ciência, embora distinta de uma física ou de uma química, por exemplo. Mas, demasiadas vezes, a arte de conceber, manejar e escolher entre modelos adultera-se porque muitos economistas pensam que o seu modelo se transforma no MODELO, ou seja pressupostamente válido qualquer que seja o contexto da sua aplicação, intra e interporalmente falando. Por isso, segundo Rodrik, os economistas devem ser muito mais modestos e, implicitamente, aceitar que não podem atingir a aplicação universal que algumas das leis da ciência que não a economia conseguem alcançar. Haverá assim uma ciência da modelização económica, concebida e ajustada em função das situações concretas que é necessário saber interpretar e transformar, mas a economia partilha uma falência endémica. Há ideias económicas que podem ser correta ou indevidamente aplicadas e daí que a insuficiência não esteja nas ideias mas nos economistas que não têm arte para conceber e escolher os modelos mais pertinentes. Nesta perspetiva de Rodrik, a transmissão da asneira e a sua reprodução em termos de política económica pode dever-se a uma má utilização das ideias económicas, por exemplo à pretensão de usar um determinado modelo para além do contexto ou da situação concreta para o qual ele foi concebido e até produziu resultados positivos.

Esta discussão levar-nos-ia muito longe, sobretudo do ponto de vista da relativização da economia como ciência. São bem compreensíveis os remoques constantes que homens prestigiados da ciência mais dura dirigem à economia e à sua pretensão de se assumir como ciência. Na posição de Rodrik, há talvez uma confiança excessiva no poder da modelização e a crença de que um economista de boa-fé encontrará ou conceberá ele próprio o modelo certo para compreender e transformar o contexto de intervenção em que se encontra. Uma posição desta natureza esbate os grandes debates téoricos da atualidade. Explorando a posição de Rodrik, diríamos que os economistas não têm sido capazes de discernir entre os maus e os bons modelos para compreender a situação global em que nos encontramos. Outros não pensam assim. Simon Wren-Lewis, múltiplas vezes presente neste blogue pela minha escrita, acaba de publicar no think-tank IMK uma visão distinta das razões pelas quais a asneira macroeconómica tem sido reproduzida. Segundo ele, os decisores da política económica, embora condicionados pelas suas preferências políticas (os seus amos e senhores), desejariam em última instância fazer as coisas certas e até podemos admitir que existe um consenso académico. Mas os decisores de política económica não o fazem porque intermediários imperfeitos o impedem.

O pensamento de Wren-Lewis parte de dois pressupostos para enunciar a sua tese que me parecem muito discutíveis. Os decisores de política económica estão longe de ser sempre bem-intencionados. E, por outro lado, o consenso académico nem sempre existe: podem coexistir em progressão diferentes paradigmas. Mas apesar desta falibilidade dos pressupostos iniciais, Wren-Lewis tem razão quando defende que a transmissão do conhecimento entre a academia e a decisão de política económica é mais complexa dada a teia de intermediários, incluindo funcionários de alto nível da administração e os próprios think-tanks.

Esta perspetiva tem pernas para andar quando aplicada ao mistério do consenso político que se formou em dada altura em torno dos programas de austeridade como forma de devolver às economias atingidas pelas crises de dívida. Foram de facto estruturas intermédias, incluindo alguns think-tanks que transformaram uma conflitualidade em falso consenso e os transmitiram falsamente aos diretórios europeus. Em termos académicos, o consenso não existe nesta matéria. Podemos até dizer que, nos tempos mias próximos, não haverá certamente registo de maior ardil de invocação de uma perspetiva de teoria macroeconómica para tentar racionalizar o que correspondia à visão do “beggar-my-neighbour” alemão. Não será difícil reconhecer na nomenclatura da Comissão Europeia a existência de potentes estruturas de intermediação que se encarregaram de pretensamente encontrar na macroeconomia teórica os fundamentos para toda a lengalenga da austeridade purificadora dos mercados.

Mas a economia real das evidências parece ter estragado o arranjinho. Isso não significa que tudo seja consertado e que a reconsideração seja óbvia. Mas uma coisa parece hoje visível. Não cola invocar a teoria macroeconómica. Por isso, as posições alemãs estão hoje cada vez mais isoladas. Perderam o banho e a coloração do disfarce teórico. Agora é só imposição.

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