(Ainda e sempre
a questão dos mecanismos de transmissão do conhecimento que tornam possível a
consagração das asneiras, da economia à política económica)
Não escondo que tenho um certo fascínio pelo estudo
das razões que levam uma asneira em política económica a perpetuar-se para além
do razoável. Sabemos hoje que essa questão não anda isolada dos mecanismos que disseminam
o conhecimento em economia, mais propriamente do modo como a teoria económica
ou economia política em geral se transmite à decisão política, isto é, à política
económica.
A questão tem sido debatida nos últimos tempos por
economistas de grande prestígio, o que sugere a importância do tema. Um dos
focos desse debate consiste em saber se é um problema dos economistas que não são
suficientemente hábeis em dotar-se e mobilizar os modelos mais pertinentes ou
se, pelo contrário, é antes um problema das ideias económicas, viciadas, que se
perpetuam por mecanismos que é possível estudar e que justificam os erros de
política económica.
Dani Rodrik publicou recentemente uma obra, “Economics Rules – The Rights and wrongs of the dismal
science”(W.W. Norton & Company), que assume a primeira
daquelas posições. Os modelos constituem segundo Rodrik a carta de alforria da
teoria económica enquanto ciência, embora distinta de uma física ou de uma química,
por exemplo. Mas, demasiadas vezes, a arte de conceber, manejar e escolher
entre modelos adultera-se porque muitos economistas pensam que o seu modelo se
transforma no MODELO, ou seja pressupostamente válido qualquer que seja o
contexto da sua aplicação, intra e interporalmente falando. Por isso, segundo
Rodrik, os economistas devem ser muito mais modestos e, implicitamente, aceitar
que não podem atingir a aplicação universal que algumas das leis da ciência que
não a economia conseguem alcançar. Haverá assim uma ciência da modelização económica,
concebida e ajustada em função das situações concretas que é necessário saber
interpretar e transformar, mas a economia partilha uma falência endémica. Há
ideias económicas que podem ser correta ou indevidamente aplicadas e daí que a
insuficiência não esteja nas ideias mas nos economistas que não têm arte para
conceber e escolher os modelos mais pertinentes. Nesta perspetiva de Rodrik, a
transmissão da asneira e a sua reprodução em termos de política económica pode
dever-se a uma má utilização das ideias económicas, por exemplo à pretensão de usar
um determinado modelo para além do contexto ou da situação concreta para o qual
ele foi concebido e até produziu resultados positivos.
Esta discussão levar-nos-ia muito longe, sobretudo do
ponto de vista da relativização da economia como ciência. São bem compreensíveis
os remoques constantes que homens prestigiados da ciência mais dura dirigem à
economia e à sua pretensão de se assumir como ciência. Na posição de Rodrik, há
talvez uma confiança excessiva no poder da modelização e a crença de que um
economista de boa-fé encontrará ou conceberá ele próprio o modelo certo para
compreender e transformar o contexto de intervenção em que se encontra. Uma
posição desta natureza esbate os grandes debates téoricos da atualidade. Explorando
a posição de Rodrik, diríamos que os economistas não têm sido capazes de
discernir entre os maus e os bons modelos para compreender a situação global em
que nos encontramos. Outros não pensam assim. Simon Wren-Lewis, múltiplas vezes
presente neste blogue pela minha escrita, acaba de publicar no think-tank IMK
uma visão distinta das razões pelas quais a asneira macroeconómica tem sido
reproduzida. Segundo ele, os decisores da política económica, embora
condicionados pelas suas preferências políticas (os seus amos e senhores), desejariam
em última instância fazer as coisas certas e até podemos admitir que existe um
consenso académico. Mas os decisores de política económica não o fazem porque
intermediários imperfeitos o impedem.
O pensamento de Wren-Lewis parte de dois pressupostos
para enunciar a sua tese que me parecem muito discutíveis. Os decisores de política
económica estão longe de ser sempre bem-intencionados. E, por outro lado, o
consenso académico nem sempre existe: podem coexistir em progressão diferentes paradigmas.
Mas apesar desta falibilidade dos pressupostos iniciais, Wren-Lewis tem razão
quando defende que a transmissão do conhecimento entre a academia e a decisão
de política económica é mais complexa dada a teia de intermediários, incluindo funcionários
de alto nível da administração e os próprios think-tanks.
Esta perspetiva tem pernas para andar quando aplicada ao
mistério do consenso político que se formou em dada altura em torno dos
programas de austeridade como forma de devolver às economias atingidas pelas crises
de dívida. Foram de facto estruturas intermédias, incluindo alguns think-tanks que transformaram uma conflitualidade
em falso consenso e os transmitiram falsamente aos diretórios europeus. Em
termos académicos, o consenso não existe nesta matéria. Podemos até dizer que,
nos tempos mias próximos, não haverá certamente registo de maior ardil de invocação
de uma perspetiva de teoria macroeconómica para tentar racionalizar o que
correspondia à visão do “beggar-my-neighbour”
alemão. Não será difícil reconhecer na nomenclatura da Comissão Europeia a existência
de potentes estruturas de intermediação que se encarregaram de pretensamente
encontrar na macroeconomia teórica os fundamentos para toda a lengalenga da
austeridade purificadora dos mercados.
Mas a economia real das evidências parece ter estragado o
arranjinho. Isso não significa que tudo seja consertado e que a reconsideração seja
óbvia. Mas uma coisa parece hoje visível. Não cola invocar a teoria macroeconómica.
Por isso, as posições alemãs estão hoje cada vez mais isoladas. Perderam o banho
e a coloração do disfarce teórico. Agora é só imposição.
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