quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

ECOS DE PARIS




(No rescaldo dos atentados terroristas e em plena Conferência do Clima, questões recorrentes para lá dos focos da atenção de todos)

As cidades globais são assim. Estão condenadas a estar no centro das nossas atenções, para o mal e para o bem. Assim acontece com Paris, ainda a lamber as feridas da barbárie em escala ascendente e já no centro de uma conferência climática que pode marcar um ponto de viragem, como o sublinhou Obama, em matéria de resposta ao desafio das mudanças climáticas. Politicamente, os líderes mundiais, principalmente Hollande que parece condenado a apoiar-se tragicamente na solenidade de tempos como estes para ganhar uma ponta de afirmação e consistência, não fizeram por menos e elegeram o combate ao terrorismo islâmico radical e às mudanças climáticas como os grandes desafios do nosso tempo. Ainda não percebi se a associação entre os dois combates é uma questão de convergência no tempo, ou se pensaram nos laços que os podem unir. É matéria sobre a qual vale a pena refletir, mas isso ficará para o fim do post de hoje.

Por agora, interessa-me sobretudo destacar que, embora a intensidade de ambos os problemas tenha sido fortemente agravada nos tempos recentes, quanto mais os desfiamos e mergulhamos em leituras e interpretações mais aprofundadas da sua eclosão, mais nos apercebemos que existem recorrências, para as quais o mundo político continua a não ter respostas ou soluções satisfatórias.

Começo pelo rescaldo dos atentados de Paris. Sou fanático observador de uma questão que já ocorreu posteriormente ao derrube das Torres Gémeas do 11 de setembro, a que chamaria o ajuste de contas e problematização das questões da informação e segurança que tornaram possível as quebras de segurança observadas e que só alguns dias depois é possível corretamente dimensionar. Sou fanático não apenas como curioso, mas porque esta matéria, embora possa parecer esdrúxula, interessa bastante ao planeamento estratégico e à informação que é necessário mobilizar para o tornar possível.

Nestes últimos dias tenho passado os olhos por jornais franceses e belgas para me inteirar do referido ajuste de contas e espero que apareça um destes dias uma peça de jornalismo de investigação sobre a matéria, por exemplo de uma New Yorker ou coisa parecida. Como previa, os serviços de informações franceses e belgas estão na berlinda. Aliás, as declarações políticas vigorosas de Hollande e de Valls e as mais inconsistentes do primeiro-ministro belga acabam por ocultar uma realidade que nos deve preocupar a nós, cidadãos indefesos. O estado de sítio protetor em que Bruxelas foi colocada é sintomático da debilidade do sistema de informação de suporte. Aquilo que se vai sabendo sobre a descoordenação entre os serviços de informação e segurança internos e externos franceses, sobre as dificuldades de agilização das trocas de informação entre os diferentes serviços dos estados europeus e entre estes e os americanos, sobre as condições de regressão de recursos que todos esses serviços experimentaram nos últimos quatro anos, é de facto a ponta de um iceberg de insegurança, pronto a desprender-se a uma velocidade mais rápida do que a imposta pelo degelo climático.

No seio desta descoordenação e dos vazios de cooperação estão questões já recorrentes, pelo menos conhecidas de há mais de uma década. Primeiro, a contradição entre serviços de informação que teimam em ser nacionais e prerrogativa dos Estados individualmente considerados e a globalização do terrorismo está cada vez mais cavada. A forma como os mentores dos atentados de Paris circularam entre a Síria e a União Europeia de Shengen é menos um mistério do que um resultado plausível dessa contradição. Segundo, a massa crítica que o jiadismo está a atingir está a aumentar o volume de pessoas a monitorizar pelos sistemas de informação para níveis que os sistemas de informação e de inteligência não podem agilmente administrar, mesmo que auxiliados por poderosos sistemas de software. Uma das regularidades observadas nos atentados de Paris é que envolveu na sua maioria indivíduos referenciados nas bases de dados, mas que por qualquer motivo deixaram de ser monitorizados ou então passaram a níveis de vigilância menos exigentes. Não está ainda demonstrada a tese de que alguns jiadistas terão evidenciado comportamentos aparentemente contrários ao islão mais radical, mas por dissimulação consentida e até segundo alguns permitida pelo próprio Corão. Terceiro, é hoje cada vez mais clara a presença nestes casos do clássico problema de saber como atribuir relevância a priori ou ex-ante a uma dada informação que mais tarde, após a eclosão dos acontecimentos, vem a revelar-se indicativa de algo poderia passar-se. É célebre a notícia de que um dos pilotos suicidas do 11 de setembro andou a tirar lições de voo numa escola que utiliza o aeroporto de Miami e que até teve um incidente de saída de pista e invasão da pista principal com o pequeno avião de aprendizagem. Mas o facto perdeu-se e só viria a recobrar o seu significado pleno após os atentados. Quanto mais informação resultar da monitorização de uma massa crítica crescente de suspeitos, mais este problema tenderá a afetar todo o exercício de informação sobre o comportamento de jiadistas potenciais. Ou seja, não é seguro que o aprofundamento e sofisticação dos métodos de análise da informação recolhida constitua a única via para a monitorização certa e atempada. Análise e síntese, racionalidade e intuição, estamos de regresso ao velho problema da informação em planeamento. O mundo está tragicamente a talhar-se para os securitários. Mas a fragilidade das malhas inteligentes da segurança deve começar a preocupar-nos.

No domínio das mudanças climáticas, há pelo menos a evolução de que a sensibilização ao aquecimento global parece ter aumentado. Mas há um problema recorrente quando se passa aos programas de ação e ao seu financiamento. Quem financia o esforço de queimar etapas da evolução tecnológica que as economias mais desenvolvidas estão a tentar impor aos menos desenvolvidos? Uma coisa é impor aos menos desenvolvidos ritmos de crescimento mais baixos para reduzir consequentes as emissões de gases com efeito de estufa. Outra coisa é permitir que esses países cresçam com as tecnologias mais modernas e menos emissoras. O cinismo ocidental é demasiado despudorado. A transferência de tecnologia já a caminho do fim de ciclo para os menos desenvolvidos sempre foi uma má tradição das relações entre desenvolvidos e subdesenvolvidos carenciados de tecnologia. Se essa prática se mantiver, então a redução de emissões significará não crescimento, desemprego em escala crescente e pobreza extrema. Se para isso for necessário uma revolução tecnológica verde nesses países quem a financia? Ou seja, recorrentemente, a questão climática continua a ter de ser tratada no contexto desenvolvimento-subdesenvolvimento e como isto é música para os meus ouvidos.

Regresso ao ponto de partida. Politicamente, o combate ao terrorismo, a resolução do problema dos refugiados e as mudanças climáticas foram considerados desafios maiores. Num destes dias, numa leitura acidental e fugidia creio que foi do Le Monde, dei com uma análise fina de um outro tipo de ligação entre estes fenómenos. Dizia o analista que a zona de mais intensos combates envolvendo na Síria o designado Estado Islâmico e sendo origem dos fluxos mais intensos de refugiados sírios era precisamente a zona do território sírio mais atingida pela incidência das mudanças climáticas naquele país, mais precisamente de longas e trágicas secas que desestruturaram toda a vida agrícola desses territórios.

Os problemas são de facto cada vez mais globais e as medidas continuam a ser gizadas a partir dos esquemas administrativos dos Estados-nação. Frágeis soluções.

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