(No rescaldo
dos atentados terroristas e em plena Conferência do Clima, questões recorrentes
para lá dos focos da atenção de todos)
As cidades globais são assim. Estão condenadas a estar no centro das nossas
atenções, para o mal e para o bem. Assim acontece com Paris, ainda a lamber as
feridas da barbárie em escala ascendente e já no centro de uma conferência climática
que pode marcar um ponto de viragem, como o sublinhou Obama, em matéria de resposta
ao desafio das mudanças climáticas. Politicamente, os líderes mundiais,
principalmente Hollande que parece condenado a apoiar-se tragicamente na
solenidade de tempos como estes para ganhar uma ponta de afirmação e consistência,
não fizeram por menos e elegeram o combate ao terrorismo islâmico radical e às
mudanças climáticas como os grandes desafios do nosso tempo. Ainda não percebi
se a associação entre os dois combates é uma questão de convergência no tempo,
ou se pensaram nos laços que os podem unir. É matéria sobre a qual vale a pena
refletir, mas isso ficará para o fim do post
de hoje.
Por agora, interessa-me sobretudo destacar que, embora a intensidade de
ambos os problemas tenha sido fortemente agravada nos tempos recentes, quanto
mais os desfiamos e mergulhamos em leituras e interpretações mais aprofundadas
da sua eclosão, mais nos apercebemos que existem recorrências, para as quais o
mundo político continua a não ter respostas ou soluções satisfatórias.
Começo pelo rescaldo dos atentados de Paris. Sou fanático observador de uma
questão que já ocorreu posteriormente ao derrube das Torres Gémeas do 11 de
setembro, a que chamaria o ajuste de contas e problematização das questões da
informação e segurança que tornaram possível as quebras de segurança observadas
e que só alguns dias depois é possível corretamente dimensionar. Sou fanático não
apenas como curioso, mas porque esta matéria, embora possa parecer esdrúxula,
interessa bastante ao planeamento estratégico e à informação que é necessário
mobilizar para o tornar possível.
Nestes últimos dias tenho passado os olhos por jornais franceses e belgas para
me inteirar do referido ajuste de contas e espero que apareça um destes dias uma
peça de jornalismo de investigação sobre a matéria, por exemplo de uma New Yorker
ou coisa parecida. Como previa, os serviços de informações franceses e belgas
estão na berlinda. Aliás, as declarações políticas vigorosas de Hollande e de
Valls e as mais inconsistentes do primeiro-ministro belga acabam por ocultar
uma realidade que nos deve preocupar a nós, cidadãos indefesos. O estado de sítio
protetor em que Bruxelas foi colocada é sintomático da debilidade do sistema
de informação de suporte. Aquilo que se vai sabendo sobre a descoordenação
entre os serviços de informação e segurança internos e externos franceses,
sobre as dificuldades de agilização das trocas de informação entre os
diferentes serviços dos estados europeus e entre estes e os americanos, sobre
as condições de regressão de recursos que todos esses serviços experimentaram
nos últimos quatro anos, é de facto a ponta de um iceberg de insegurança,
pronto a desprender-se a uma velocidade mais rápida do que a imposta pelo
degelo climático.
No seio desta descoordenação e dos vazios de cooperação estão questões já
recorrentes, pelo menos conhecidas de há mais de uma década. Primeiro, a
contradição entre serviços de informação que teimam em ser nacionais e
prerrogativa dos Estados individualmente considerados e a globalização do
terrorismo está cada vez mais cavada. A forma como os mentores dos atentados de
Paris circularam entre a Síria e a União Europeia de Shengen é menos um mistério
do que um resultado plausível dessa contradição. Segundo, a massa crítica que o
jiadismo está a atingir está a aumentar o volume de pessoas a monitorizar pelos
sistemas de informação para níveis que os sistemas de informação e de inteligência
não podem agilmente administrar, mesmo que auxiliados por poderosos sistemas de
software. Uma das regularidades observadas
nos atentados de Paris é que envolveu na sua maioria indivíduos referenciados nas
bases de dados, mas que por qualquer motivo deixaram de ser monitorizados ou
então passaram a níveis de vigilância menos exigentes. Não está ainda
demonstrada a tese de que alguns jiadistas terão evidenciado comportamentos
aparentemente contrários ao islão mais radical, mas por dissimulação consentida
e até segundo alguns permitida pelo próprio Corão. Terceiro, é hoje cada vez
mais clara a presença nestes casos do clássico problema de saber como atribuir
relevância a priori ou ex-ante a uma dada informação que mais tarde,
após a eclosão dos acontecimentos, vem a revelar-se indicativa de algo poderia
passar-se. É célebre a notícia de que um dos pilotos suicidas do 11 de setembro
andou a tirar lições de voo numa escola que utiliza o aeroporto de Miami e que
até teve um incidente de saída de pista e invasão da pista principal com o
pequeno avião de aprendizagem. Mas o facto perdeu-se e só viria a recobrar o
seu significado pleno após os atentados. Quanto mais informação resultar da
monitorização de uma massa crítica crescente de suspeitos, mais este problema tenderá
a afetar todo o exercício de informação sobre o comportamento de jiadistas
potenciais. Ou seja, não é seguro que o aprofundamento e sofisticação dos métodos
de análise da informação recolhida constitua a única via para a monitorização
certa e atempada. Análise e síntese, racionalidade e intuição, estamos de
regresso ao velho problema da informação em planeamento. O mundo está tragicamente
a talhar-se para os securitários. Mas a fragilidade das malhas inteligentes da segurança
deve começar a preocupar-nos.
No domínio das mudanças climáticas, há pelo menos a evolução de que a
sensibilização ao aquecimento global parece ter aumentado. Mas há um problema
recorrente quando se passa aos programas de ação e ao seu financiamento. Quem financia
o esforço de queimar etapas da evolução tecnológica que as economias mais
desenvolvidas estão a tentar impor aos menos desenvolvidos? Uma coisa é impor
aos menos desenvolvidos ritmos de crescimento mais baixos para reduzir consequentes
as emissões de gases com efeito de estufa. Outra coisa é permitir que esses países
cresçam com as tecnologias mais modernas e menos emissoras. O cinismo ocidental
é demasiado despudorado. A transferência de tecnologia já a caminho do fim de
ciclo para os menos desenvolvidos sempre foi uma má tradição das relações entre
desenvolvidos e subdesenvolvidos carenciados de tecnologia. Se essa prática se
mantiver, então a redução de emissões significará não crescimento, desemprego
em escala crescente e pobreza extrema. Se para isso for necessário uma revolução
tecnológica verde nesses países quem a financia? Ou seja, recorrentemente, a
questão climática continua a ter de ser tratada no contexto desenvolvimento-subdesenvolvimento
e como isto é música para os meus ouvidos.
Regresso ao ponto de partida. Politicamente, o combate ao terrorismo, a resolução
do problema dos refugiados e as mudanças climáticas foram considerados desafios
maiores. Num destes dias, numa leitura acidental e fugidia creio que foi do Le Monde, dei com uma análise fina de um
outro tipo de ligação entre estes fenómenos. Dizia o analista que a zona de
mais intensos combates envolvendo na Síria o designado Estado Islâmico e sendo origem
dos fluxos mais intensos de refugiados sírios era precisamente a zona do território
sírio mais atingida pela incidência das mudanças climáticas naquele país, mais
precisamente de longas e trágicas secas que desestruturaram toda a vida agrícola
desses territórios.
Os problemas são de facto cada vez mais globais e as medidas continuam a
ser gizadas a partir dos esquemas administrativos dos Estados-nação. Frágeis
soluções.
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