(À medida que a decisão de aumentar taxas de referência por parte do FED –USA
se torna cada vez mais provável, maior atenção se impõe ao pensamento que vai
emergindo a partir da instituição)
O Banco da Reserva Federal dos EUA, a instituição central e os bancos nela representados,
é uma fonte inesgotável de produção de pensamento macroeconómico digno de atenção.
Os discursos de alguns dos membros do seu corpo executivo são peças incontornáveis
para se compreender o quadro macroeconómico em que a economia americana se movimenta
e, indiretamente, da própria situação macroeconómica mundial. O duplo mandato
de estabilidade de preços e de pleno emprego a que o FED está obrigado tem sido
progressivamente exercido com monitorização rigorosa da economia mundial, sobretudo
do grupo dos emergentes incluindo a China, tamanha é a imbricação por via dos
mercados financeiros entre as economias, não esquecendo ainda o comportamento
do dólar e o próprio impacto nas exportações americanas. Acresce que não
estamos a falar de mangas-de-alpaca e burocratas. Estamos a falar de grandes
economistas, que passaram da academia (e a ela regressarão na sua grande
maioria terminados os seus mandatos), como é o caso dos três economistas autores
dos três discursos que convoquei para este post, todos eles proferidos nos
primeiros dias de dezembro: Janet Yellen, que lidera o FED, Stanley Fisher vice-presidente
e Lael Brainard, governador. Também por aqui passa a disseminação das ideias
macroeconómicas e não espanta por isso que o debate macroeconómico seja mais
rico e intenso nos EUA do que na Europa.
Yellen e Brainard elaboraram sobre as condições que ditarão ou não a
necessidade de aumento da taxa de referência do FED, a primeira com uma análise
mais global sobre o momento atual da economia americana e o segundo trabalhando
sobretudo o conceito de taxa de juro nominal neutral. Este último conceito representa
uma grandeza não observada e que necessita por isso de ser estimada por métodos
indiretos: é a taxa de juro de referência do FED consistente com um crescimento
económico próximo do produto potencial, pleno emprego e estabilidade de preços.
A taxa de juro nominal neutral equivale de certa maneira a um outro velho
conceito da macroeconomia, a taxa de juro natural, mais propriamente a taxa que
equilibrará a poupança e o investimento em condições de pleno emprego. Fisher,
por sua vez, elabora sobre a estabilidade do sistema financeiro e mais propriamente
sobre os avanços reguladores sobre uma realidade que se revelou letal em plena
crise financeira de 2007-2008, os chamados bancos sombra, entidades não bancárias
mas que exercem uma intervenção sobre os mercados financeiros embora não
estando sujeitas às mesmas condições de supervisão e de regulação.
O debate em torno do “outlook” atual
da economia americana é vital para compreendermos o estado global previsível da
economia mundial. A curiosidade do debate está no facto da economia americana
se aproximar do que vulgarmente é entendida como uma taxa de desemprego de
equilíbrio, 5%. A economia americana estaria assim a aproximar-se de uma situação
de pleno emprego, com crescimento económico moderado e inflação bem abaixo do
ritmo de crescimento de preços em regra associado à estabilidade nominal, 2%. Num
primeiro e aparente relance, a economia americana estaria assim em condições de
exigir a subida das taxas de juro de referência em direção ao que seria interpretável
como normalidade. Porquê então o debate?
Várias matérias são responsáveis pelo ambiente de debate. Primeiro, não é seguro
que a aproximação à taxa de 5% não tenha sido realizada com a permanência de fenómenos
de subocupação de recursos em matéria de mercado de trabalho. O FED identifica
sinais de que continua a haver população fora da força de trabalho que deseja e
ainda não conseguiu regressar com êxito ao mercado de trabalho. Por outro lado,
embora em diminuição, a percentagem de trabalhadores a tempo parcial que
desejariam trabalhar a tempo interno e não o conseguem continua elevada. Segundo,
o crescimento moderado de salários ainda não se identifica completamente com
uma situação de pleno emprego. Terceiro, continua a ser incerto que a progressão
do crescimento dos preços evolua rapidamente para o valor de referência de 2%. Quarto,
não é seguro que o valor da taxa nominal de juro neutral regresse aos valores
que assumia antes da Grande Recessão, tudo indicando que permanecerá por longo
tempo abaixo desses valores. Quinto, continua a ser claro que, em contexto de
taxas de juro nulas ou negativas, será sempre mais fácil intervir tardiamente sobre
pressões inflacionárias (que não são expectáveis) do que emendar a mão de uma
restrição demasiado precoce. Por todas estas razões, a decisão a tomar pelo FED
no sentido da pretensa “normalidade”, continua a enfrentar a suprema interrogação
sobre o que será o novo normal.
Se no plano da performance macro as interrogações permanecem, do ponto de
vista da estabilidade financeira o discurso de Stanley Fisher alerta-nos para o
facto da teoria desconhecer de modo mais profundo as relações existentes entre
a atividade bancária e a sua regulação e as instituições financeiras não bancárias.
Tudo isto significa que as vulnerabilidades das economias de mercado face a
uma eventual reincidência de uma Grande Recessão como a de 2007-2008 permitem-nos
dizer que não é seguro que tenhamos apreendido todas as lições necessárias para
a superar. Por isso, será melhor evitar essa reincidência do que confiar nas
lições aprendidas. E não serão apenas a política monetária e os bancos centrais
que poderão assegurar que essa reincidência não se produza, embora para isso
possam contribuir.
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