(Onde se fala da
radicalização política como tema do ano, contexto que é necessário invocar para compreender a chegada de António
Costa ao poder e outras manifestações que se prolongarão por 2016)
E vão cinco temas do ano, desfiados em outros tantos blogues. A radicalização
política é um dos temas marcantes de 2015, sobretudo no contexto europeu. 2015 é
também, porém, o ano de queda de pelo menos dois populismos latino-americanos,
ambos esgotados nas suas contradições, o argentino e o venezuelano.
Mas é sobretudo da radicalização política europeia que pretendo assinalar
como tema marcante do ano, com configurações de direita (em França, na Polónia,
na Hungria) e de esquerda (na Grécia, em Espanha, em Portugal).
A primeira questão relevante é a da identificação das razões que determinaram
a referida radicalização política. Há pelo menos dois contextos que foram determinantes
para que em 2015 o fenómeno se agudizasse. O primeiro é inequivocamente o de ambiente
geral de radicalização a que a configuração do capitalismo, financeiro em
particular, tem conduzido a ação política. O fenómeno da desigualdade é a
manifestação que melhor ilustra essa radicalização. Esta por sua vez é uma
outra face da falência da social-democracia europeia como geradora de alternativa
de gestão macroeconómica mais distributiva e inclusiva para as economias de mercado da União Europeia.
A social-democracia representava uma espécie de tampão ao avanço dos radicalismos
políticos. A sua aliança tácita com a direita europeia e com o modelo de política
económica e de gestão da crise que capturou as instâncias europeias fragilizou
esse tampão. O ambiente geral de desequilíbrio de forças entre o universo mais
precário e pobre do trabalho e as forças que desregularam o capitalismo financeiro
e global determinaram que um conjunto muito vasto de populações se visse sem
proteção e representação política, a não ser em partidos mais radicais e genericamente
anticapitalismo.
Em clara interação com esta primeira questão, os processos de ajustamento
de austeridade foram concebidos e aplicados sem qualquer ponderação dos efeitos
políticos de tais processos. A austeridade agravou substancialmente as já desequilibradas
condições de repartição do rendimento. Como já aqui demonstrei em posts anteriores, pelo menos no caso de
Portugal, não podemos dizer que os estratos mais elevados de rendimento não
tenham levado uma boa talhada com os cortes impostos pelos processos de
ajustamento. Simplesmente, numa distribuição desigual de rendimento, a
penosidade dos cortes para os estratos mais altos é bem menor do que cortes
similares para os estratos de rendimento mais baixo.
A austeridade potenciou assim o clima de radicalização, que não é mais do
que a procura da defesa política dos interesses dos mais atingidos pela crise
em formações políticas que já romperam com a social-democracia há muito tempo.
Os processos de radicalização política de direita, designadamente a contínua
ascensão da Frente Nacional em França e a radicalização nacionalista na Polónia,
têm na minha interpretação uma génese diferente. Aí a proteção política dos interesses
dos mais desfavorecidos descola da social-democracia por força da ilusão de que
o revivalismo nacionalista os poderá proteger face aos malefícios da globalização.
A esse fenómeno junta-se um outro, mais trágico e com efeitos mais perniciosos.
Trata-se da perspetiva securitária face ao desconhecimento “do outro”, cuja
passagem para a ausência total de solidariedade para quem chega, refugiado, de
fora, é um simples passo. O nacionalismo político de direita explora
vergonhosamente essa perspetiva securitária e nesse fenómeno não é a social-democracia
apenas que descola. Em França, temos trabalhadores que votavam Partido
Comunista a votar Frente Nacional. À mínima possibilidade de chegada efetiva ao
poder destes nacionalismos, Aqui del Rei, é necessário barrar a sua passagem. Porém,
ninguém parece admitir a existência de processos que conduziram a essa emergência
e, pior do que isso, ninguém parece decidido a inverter o rumo desses
processos.
2015 trouxe-nos no caso mais agudo dessa radicalização a chegada ao poder
de uma formação política radical, o SYRIZA. Não é por acaso que isso aconteceu
na Grécia. Por razões diversas mas que se potenciaram, a Grécia representou o
caso mais violento de ajustamento. Em Portugal e em Espanha, as forças políticas
de direita que geriram os processos de ajustamento perderam imensos votos e
maiorias absolutas e deram origem a novas combinações políticas possíveis.
A chegada de António Costa ao poder não é apenas o resultado da sua intuição
política e da sua capacidade negocial. É fruto do contexto de radicalização a
que o processo de ajustamento e o capitalismo de compadrio em que a economia
portuguesa mergulhou conduziram a sociedade portuguesa. E, neste caso, essa
mesma radicalização teve um poderoso efeito de ricochete nas forças de esquerda
que haviam descolado da social-democracia, Bloco de Esquerda e Partido Comunista
Português. Estas forças políticas perceberam que a melhor forma de proteger os
interesses das populações mais desfavorecidas que procuravam a sua proteção política
era garantir-lhes que quem comandou o processo de ajustamento não governaria. Tão
simples como isso.
Costa foi acusado do pior por uma direita incrédula que não só não gostou
da brincadeira e da perda de ilusões, mas também não compreendeu o contexto de
radicalização criado. Pressupôs erradamente que a lengalenga da saída limpa e
que uma recuperaçãozinha ditada por aliviamento fiscal seriam suficientes para
branquear essa radicalização. Enganaram-se e tiveram de rever os seus timings e até Portas se convenceu de que
tinha de explorar novas oportunidades.
A esquerdização do PS, tão lamentada por alguns socialistas (alguns
centristas convictos e outros simples oportunistas das jogadas do bloco central
e tão beneficiários do capitalismo de compadrio como outros quaisquer), é na
minha perspetiva uma transição, temporária mas inevitável, necessária sob pena
de emissão de passaporte para a irrelevância. Temporária e inevitável, porquê?
Principalmente, porque o PS, tal como os outros partidos socialistas europeus,
não tem o trabalho de casa feito (os TPC são complexos e exigentes) e talvez nunca
os venha a fazer. A necessidade de construir uma alternativa à falência e
cumplicidade da social-democracia mais tradicional, que seja capaz de combinar
modelos mais inclusivos e distributivos de crescimento económico com a afirmação
do primado e do valor da empresa como célula de organização económica
fundamental, é uma tarefa gigantesca. O PCP e o BC dificilmente poderão ser “compagnons
de route desse empreendimento” neste processo. Terá o PS unhas e gente
para se pôr ao caminho, depois de ultrapassado este período e cumprido
escrupulosamente o acordo de esquerda que é em si próprio um acontecimento próprio
de um processo de radicalização política?
Gostaria de viver o suficiente para pelo menos assistir aos preliminares
dessa revisão de ideias programáticas. Mas não estou certo disso, sobretudo
porque vejo as unhas bastante roídas e pouca gente para o fazer.
Feliz 2016, quand même …
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