quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

A RADICALIZAÇÃO COMO TEMA DO ANO




(Onde se fala da radicalização política como tema do ano, contexto que é necessário invocar para compreender a chegada de António Costa ao poder e outras manifestações que se prolongarão por 2016)

E vão cinco temas do ano, desfiados em outros tantos blogues. A radicalização política é um dos temas marcantes de 2015, sobretudo no contexto europeu. 2015 é também, porém, o ano de queda de pelo menos dois populismos latino-americanos, ambos esgotados nas suas contradições, o argentino e o venezuelano.

Mas é sobretudo da radicalização política europeia que pretendo assinalar como tema marcante do ano, com configurações de direita (em França, na Polónia, na Hungria) e de esquerda (na Grécia, em Espanha, em Portugal).

A primeira questão relevante é a da identificação das razões que determinaram a referida radicalização política. Há pelo menos dois contextos que foram determinantes para que em 2015 o fenómeno se agudizasse. O primeiro é inequivocamente o de ambiente geral de radicalização a que a configuração do capitalismo, financeiro em particular, tem conduzido a ação política. O fenómeno da desigualdade é a manifestação que melhor ilustra essa radicalização. Esta por sua vez é uma outra face da falência da social-democracia europeia como geradora de alternativa de gestão macroeconómica mais distributiva e inclusiva para as economias de mercado da União Europeia. A social-democracia representava uma espécie de tampão ao avanço dos radicalismos políticos. A sua aliança tácita com a direita europeia e com o modelo de política económica e de gestão da crise que capturou as instâncias europeias fragilizou esse tampão. O ambiente geral de desequilíbrio de forças entre o universo mais precário e pobre do trabalho e as forças que desregularam o capitalismo financeiro e global determinaram que um conjunto muito vasto de populações se visse sem proteção e representação política, a não ser em partidos mais radicais e genericamente anticapitalismo.

Em clara interação com esta primeira questão, os processos de ajustamento de austeridade foram concebidos e aplicados sem qualquer ponderação dos efeitos políticos de tais processos. A austeridade agravou substancialmente as já desequilibradas condições de repartição do rendimento. Como já aqui demonstrei em posts anteriores, pelo menos no caso de Portugal, não podemos dizer que os estratos mais elevados de rendimento não tenham levado uma boa talhada com os cortes impostos pelos processos de ajustamento. Simplesmente, numa distribuição desigual de rendimento, a penosidade dos cortes para os estratos mais altos é bem menor do que cortes similares para os estratos de rendimento mais baixo.

A austeridade potenciou assim o clima de radicalização, que não é mais do que a procura da defesa política dos interesses dos mais atingidos pela crise em formações políticas que já romperam com a social-democracia há muito tempo.

Os processos de radicalização política de direita, designadamente a contínua ascensão da Frente Nacional em França e a radicalização nacionalista na Polónia, têm na minha interpretação uma génese diferente. Aí a proteção política dos interesses dos mais desfavorecidos descola da social-democracia por força da ilusão de que o revivalismo nacionalista os poderá proteger face aos malefícios da globalização. A esse fenómeno junta-se um outro, mais trágico e com efeitos mais perniciosos. Trata-se da perspetiva securitária face ao desconhecimento “do outro”, cuja passagem para a ausência total de solidariedade para quem chega, refugiado, de fora, é um simples passo. O nacionalismo político de direita explora vergonhosamente essa perspetiva securitária e nesse fenómeno não é a social-democracia apenas que descola. Em França, temos trabalhadores que votavam Partido Comunista a votar Frente Nacional. À mínima possibilidade de chegada efetiva ao poder destes nacionalismos, Aqui del Rei, é necessário barrar a sua passagem. Porém, ninguém parece admitir a existência de processos que conduziram a essa emergência e, pior do que isso, ninguém parece decidido a inverter o rumo desses processos.

2015 trouxe-nos no caso mais agudo dessa radicalização a chegada ao poder de uma formação política radical, o SYRIZA. Não é por acaso que isso aconteceu na Grécia. Por razões diversas mas que se potenciaram, a Grécia representou o caso mais violento de ajustamento. Em Portugal e em Espanha, as forças políticas de direita que geriram os processos de ajustamento perderam imensos votos e maiorias absolutas e deram origem a novas combinações políticas possíveis.

A chegada de António Costa ao poder não é apenas o resultado da sua intuição política e da sua capacidade negocial. É fruto do contexto de radicalização a que o processo de ajustamento e o capitalismo de compadrio em que a economia portuguesa mergulhou conduziram a sociedade portuguesa. E, neste caso, essa mesma radicalização teve um poderoso efeito de ricochete nas forças de esquerda que haviam descolado da social-democracia, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português. Estas forças políticas perceberam que a melhor forma de proteger os interesses das populações mais desfavorecidas que procuravam a sua proteção política era garantir-lhes que quem comandou o processo de ajustamento não governaria. Tão simples como isso.

Costa foi acusado do pior por uma direita incrédula que não só não gostou da brincadeira e da perda de ilusões, mas também não compreendeu o contexto de radicalização criado. Pressupôs erradamente que a lengalenga da saída limpa e que uma recuperaçãozinha ditada por aliviamento fiscal seriam suficientes para branquear essa radicalização. Enganaram-se e tiveram de rever os seus timings e até Portas se convenceu de que tinha de explorar novas oportunidades.

A esquerdização do PS, tão lamentada por alguns socialistas (alguns centristas convictos e outros simples oportunistas das jogadas do bloco central e tão beneficiários do capitalismo de compadrio como outros quaisquer), é na minha perspetiva uma transição, temporária mas inevitável, necessária sob pena de emissão de passaporte para a irrelevância. Temporária e inevitável, porquê? Principalmente, porque o PS, tal como os outros partidos socialistas europeus, não tem o trabalho de casa feito (os TPC são complexos e exigentes) e talvez nunca os venha a fazer. A necessidade de construir uma alternativa à falência e cumplicidade da social-democracia mais tradicional, que seja capaz de combinar modelos mais inclusivos e distributivos de crescimento económico com a afirmação do primado e do valor da empresa como célula de organização económica fundamental, é uma tarefa gigantesca. O PCP e o BC dificilmente poderão ser “compagnons de route desse empreendimento” neste processo. Terá o PS unhas e gente para se pôr ao caminho, depois de ultrapassado este período e cumprido escrupulosamente o acordo de esquerda que é em si próprio um acontecimento próprio de um processo de radicalização política?

Gostaria de viver o suficiente para pelo menos assistir aos preliminares dessa revisão de ideias programáticas. Mas não estou certo disso, sobretudo porque vejo as unhas bastante roídas e pouca gente para o fazer.

Feliz 2016, quand même

Sem comentários:

Enviar um comentário