(Reflexões sobre
o que pode um cidadão normal percecionar perante dois factos metralhados pela
informação corrente)
Os espanhóis quando alguém lhes fala de bruxas dizem prudentemente “Yo no creo en brujas, pero que
las hay, las hay”. Na língua portuguesa deve haver algo de
semelhante, que não me ocorre neste momento de pressão de escrita. Mas há
coincidências macabras. Acontecimentos que se cruzam, que se sobrepõem e sobre
os quais o cidadão normal ou mediano não pode deixar de os percecionar como
estando a observar-se em simultâneo, ainda que possam não ter entre uma relação
causal ou de simples cumplicidade. A perceção da política e dos seus efeitos
por parte dos cidadãos alimenta-se muito destes cruzamentos ou coincidências. Daí
à demagogia vai um pequeno passo e por isso é tão fácil por vezes influenciar o
comportamento político dos eleitores.
De que falo nesta oportunidade?
No topo da atualidade, estão dois acontecimentos cruciais.
Primeiro, a convicção à vista de todos de que não tem faltado dinheiro público
para resgatar banca e não estou a falar de empréstimos a taxas elevadas. Trata-se
de recursos sorvidos vorazmente sem que haja por agora alguém efetivamente condenado
na proporção dos delitos e dos danos provocados. O episódio do Banif é a cereja
no topo do bolo do laxismo de administração, de supervisão e responsabilidade
política. A ideia de impacto sistémico tem ajudado a encobrir muita coisa. Não é
necessário ser especialista em sistemas financeiros para compreender a relevância
da banca, mas não consta que os recursos públicos sejam mobilizados com tanta
proficiência e à vontade para resgatar empresas que se aventuram em águas para
as quais não têm poder de navegação. A lógica da contenção pública foi imposta
sob o apontar acusatório de que viver acima das possibilidades exige punição e
regeneração. Mas a bolsa dos recursos públicos abre-se com fartura e sem parcimónia
quando é preciso intervir sobre as imparidades da grande ilusão, os mecanismos
de crédito mal parado, problemático ou simplesmente tóxico. A propósito, Fernando
Teixeira dos Santos anotava ontem na RTP3 que o crédito problemático entre 2010
e outubro de 2015 tinha sido multiplicado por três e no caso das empresas o
multiplicador é de 4.
O outro acontecimento chegou-nos de forma brutal. Alguém, ainda jovem, morreu
no Hospital de S. José de um acidente cerebral por não ter podido beneficiar ao
fim-de-semana de intervenção cirúrgica apropriada, não porque ela tivesse chegado
tarde, simplesmente porque a penúria de verbas hospitalares não permitiu
naquele caso que cirurgiões especializados fossem contratados para o período de
fim-de-semana. Alguém, oportunisticamente ou falando apenas a verdade, associou
o acontecimento aos cortes de despesa pública que foi necessário realizar durante
o período de ajustamento e contenção de gastos públicos. Pelo relato dos
acontecimentos, desta vez não funcionou nem a improvisação, nem a capacidade organizativa
de última hora, chamando um cirurgião especializado. Não descarto que possa ter
havido incúria, uma espécie de greve de zelo, ou simplesmente a revelação trágica
de que o sistema hospitalar está vulnerável e que seja eventualmente demagógico
associar a tragédia aos processos de ajustamento austeritário.
Haverá por certo inquéritos infindos sobre os dois acontecimentos, provavelmente
não gerando resultados palpáveis ou então escrutináveis apenas em roda pé.
Para o cidadão mediano, em função do qual a política é largamente construída,
os dois acontecimentos na crueza de informação divulgada revelam algo de brutal,
estranhas escolhas públicas, mesmo que não decorram do mesmo quadro de decisão.
Não há escassez de recursos públicos para resgatar o resultado da criação de
ilusões por via do crédito e do enriquecimento ilícito de alguns “artistas”
envolvidos nas trajetórias que determinaram resgates, resoluções e outros instrumentos
da parafernália de intervenções sobre a banca. Mas há penúria de verbas para contratar
cirurgiões especializados em fins-de-semana em certos hospitais.
Por mais correções que possamos apresentar é essa correlação que ficará na
cabeça do cidadão mediano. E isso não é positivo para a sua valorização do que o
Estado lhe proporciona.
Não acredito em coincidências causais, mas que las hay las hay.
Sem comentários:
Enviar um comentário