(Reflexões
em torno dos resultados eleitorais na Catalunha e de uma notícia do El Mundo)
Sou dos que penso que o catalanismo existe. Não só porque devorei toda a
obra de Manuel Vásquez Montalban e aí encontrei esse sentimento. Também porque
não me saem da memória as varandas de alguns prédios da Costa Brava em que a
classe média catalã almoçava bebendo vinho por uma espécie de lamparina
pontiaguda, num ritual estranho e aparentemente tão pouco natural.
Ora, a ideia de que esse catalanismo implica necessariamente a tão apregoada
(pelos independentistas, claro) desconexão com a sociedade espanhola é uma boa
treta. A melhor demonstração é a ida às urnas em massa no passado dia 20 de
dezembro, não em eleições regionais mas em eleições nacionais, com uma elevadíssima
taxa de participação, umas das mais elevadas de toda a Espanha. Se isso
significa desconexão com a Espanha então alguém que me explique e os
independentistas não o conseguem fazer.
A evolução política entretanto observada na Catalunha, que é indissociável
das correntes de mudança que atravessam toda a Espanha política, põe em evidência
a vulnerabilidade extrema em que o independentismo está colocado. A plataforma
cívica En Comú, animada pelo PODEMOS, venceu claramente as nacionais na Catalunha
e, embora os partidos políticos independentistas Esquerra Republicana e
Democracia e Liberdade (a nova Convergência) representem 17 deputados, a
verdade é que o Partido Socialista Catalão, o CIUDADANOS e o PP representam 18.
Mas para além desta aritmética política, que tem significado, a dinâmica política
está do lado do En Comú.
Algo mudou desde as eleições plebiscitárias de setembro passado. E essa
mudança não pode deixar de ser associada à emergência na vida política catalã
da nova alcadesa de Barcelona, Ada Colau, uma ativista que chega à presidência
da Câmara através do movimento de base apoiado pelo PODEMOS. A sua votação entre
maio (data das eleições locais) e o 20 de dezembro aumentou cerca de 40.000
votos, o que simboliza a sua progressão. Não podemos deixar de recordar que Ada
Colau é um produto do movimento dos indignados em Espanha (o 15M) através da
Plataforma de Afectados per la Hippoteca (PAH), criado em 2009 pela ativista. A
sua vitória perante o representante da então Convergência prenunciou uma ascensão
que vale a pena seguir no futuro, bem como alguns dos seus projetos que começam
a dar os seus primeiros passos como os de “Barcelona ciudad refugio” e os “Encuentros
de las ciudades del cambio”. Isto significa que a autenticidade da alcaldesa e a
sua capacidade segundo o El País de capitalizar conceitos e movimentos sociais são
em grande medida as responsáveis pelo atrofiamento estratégico e
comunicacional.
Tenho acompanhado com atenção a dinâmica política gerada no interior de um
movimento tão diverso e controverso como o PODEMOS e sobretudo a interação
entre Pablo Iglésias, líder do PODEMOS e a própria Ada Colau. Num recente comício
político em Madrid, com participação conjunta de Colau e Iglésias. Na peugada do arquivo fundamental que o El País nos proporciona, deixo-vos dois excertos
dos discursos de Iglésias e de Colau:
Pablo Iglésias: “Estoy orgulloso de vivir en un país plurinacional. Quiero vivir en un Madrid
que pueda decir a Ada Colau t’estimo molt, que pueda decir a Cataluña, Andalucía,
Galicia, a la Comunidade Valenciana t’estimo molt. Me encanta abarzar al que se
siente catalám, vasco, galego, andaluza, para construir un proyecto juntos”.
Ada Colau: “Hace años
que me siento en casa cuando vengo a Madrid, porque vengo a Madrid de la gente,
del no passarón, al Madrid valiente, al Madrid digno. Esse Madrid es también nuestro
Madrid, de los catalanes y catalanas, desde el 24 de mayo. Necessitamos
recuperla, y Madrid puede volver a ser nuestra capital, una capital del siglo XXI,
que deje atrás el obscurantidsmo y que hace mucho que nos dejó de representar a
los catalanes, gallegos, vascos, valencianos y andaluces.”
Considero este diálogo espantoso e de profundo significado político. Ou
seja, é no âmbito do controverso PODEMOS, que muito pouca gente vê a assumir um
discurso de governação, que germina praticamente o diálogo inter-territorial em
Espanha e pergunto se alguma outra força política em Espanha será capaz de
protagonizar a interação que Iglésias e Colau protagonizaram. Quem diria!
Mas o independentismo vive momentos conturbados. O Borne Centre Cultural foi
assumido pela Câmara de Barcelona liderada pela Convergência como um espaço de
visibilização do independentismo catalão. Em setembro de 2015, no auge da ofensiva
independentista, o Borne acolheu uma exposição destinada a consagrar no plano
expositivo uma interpretação da história da Guerra e cerco de 1714 (que assinala
a tomada de Barcelona pelas tropas associadas aos Bourbon) segundo as lentes da
história independentista. Essa exposição suscitou a mais intensa controvérsia,
sobretudo porque a interpretação plasmada na referida exposição foi acusada de
ser manifestamente enviesada e carenciada de rigor histórico independente. Ora,
ironia das ironias, o município agora liderado por Ada Colau anunciou recentemente
que a queda vertiginosa do número de visitantes da referida exposição independentista
vai implicar a desativação da mesma e a necessidade de enriquecer o Borne com
outros projetos expositivos, talvez com maior rigor histórico, sem lhe retirar
a carga nacionalista. O independentismo já viveu melhores dias e dos símbolos
catalães apenas o Barça parece revigorado e certamente não muito interessado no
projeto independentista.
De toda esta problemática, fica a sensação de algo de novo quando uma ativista
autêntica chega à liderança de um dos importantes municípios europeus, sobretudo
segundo critérios de mudança e de visibilidade. Os tempos de mudança saltam
perante os nossos olhos. Não os ver e tentar escondê-los para debaixo do tapete
da indiferença política será fatal para os implicados.
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