(O que
esperar da mais que provável subida das taxas de juro de referência do
FED-USA?)
No estado em que a política monetária está, as
declarações, entrevistas, discursos, exclamações, sorrisos ou trejeitos vocais
dos responsáveis dos bancos centrais, dos que têm autonomia, são interpretados
como se de verdadeiros oráculos se tratasse. Obedecendo a este critério, se nos
projetarmos em tudo o que os responsáveis do FED-USA publicaram ou sugeriram nos
últimos tempos, a antecipação para uma eventual subida das taxas de juro de referência
no que designo de “quarta-feira dia J” parece não suscitar dúvidas de que ela
vai acontecer. Na verdade, os testemunhos públicos de Janet Yellen, presidente
do FED, de Stanley Fisher e de outros escritos publicados por
governadores com direito ou não de voto no FOMC, independentemente de estarem ou não de
acordo com a mais que provável decisão, parece que tiveram por único objetivo
acomodar os mercados, massajando-os para que a subida das taxas de referência
não se tornasse equivalente a uma mudança de duche quente para duche frio e de
mangueira. O artigo de Lawrence Summers, o tal que escreve e que se sente
imediatamente o peso da sua opinião, seja no Financial Times, seja no seu
blogue e página ou noutro sítio qualquer, é já sintomático. Há já alguns dias,
Summers publicou um artigo recomendando ao FED a não subida das taxas. Ontem, o
título do artigo era “O que é que o FED deveria ter feito e fez?”.
Em tempos normais, embora hoje a normalidade em
macroeconomia esteja virada do avesso e já não seja o que já foi, estaríamos
hoje a considerar um sinal positivo essa decisão de aumento das taxas porque
isso significaria indiretamente que a decisão do FED estaria a transmitir a
solidez da recuperação da economia americana. Isso seria bom para uma economia
mundial ameaçada de instabilidade e padecendo de sinais em alguns dos seus
vértices da maleita da estagnação secular. Isso também seria muito bom para
alguma da economia portuguesa transacionável, por exemplo os vinhos, que tem
conseguido nos últimos tempos avançar na progressão em mercado americano.
Porque é que será então que essa mais que provável decisão não sossega os
espíritos mais críticos, apesar dos mercados terem sido abundantemente
massajados para amenizar os efeitos dessa mesma decisão?
Existe um consenso generalizado de que a política
monetária deve evitar surpresas maiores. Essa entidade mítica dos mercados não
é de confiança, pois o que o senso comum entende por humores do mercado são
frequentemente jogos explícitos de cálculo económico, numa palavra pura
especulação para jogar e tirar partido de incautos e desprevenidos. Por isso, a
forward guidance que o FED procurou
disseminar não é em si atacável. Mas Summers coloca a questão em termos hábeis.
Não está em causa que a sinalização tenha sido prudente e sensata. Mas a
questão relevante é saber se a sinalização deveria ter sido produzida para tornar
a subida da taxa de referência inevitável. O que significa por outras palavras
que a situação de base da economia americana está longe de ser consensual e os
bancos centrais continuam a enfrentar o risco inevitável das antecipações de
situação económica.
Os argumentos que puxaram a forward guidance para uma subida de taxas são hoje claros e nisso
há pelo menos uma virtude de clareza:
- O FED receia tal como qualquer outro banco central o tempo desfasado em que a política monetária produz efeitos, sendo por isso sensível aos riscos de intervir demasiado tarde em tensões eventualmente inflacionistas;
- Por outro lado, o FED nunca se livrou do receio de que os mercados percecionassem que nunca mais subiria as taxas, abrindo caminho a instabilidade financeira ditada pela procura de projetos com riscos sobrelevados;
- Mais ainda, a manutenção de taxas a níveis tão baixos deixaria a instituição de calças na mão face a uma qualquer e eventual perturbação financeira que exigisse descida de taxas;
- E, finalmente, a mais subtil, o FED receia o risco de que um período demasiado longo de taxas de juro baixas seja percecionado pelos agentes económicos como um sinal de problemas estruturais, estendendo-se esse efeito dominó a todos os agentes que internalizariam os maus presságios.
Os receios são transparentes, não duvido. Mas isso não
significa que sejam consistentes. Apesar da sua transparência, os receios do
FED são eles próprios voláteis e estão longe, muito longe mesmo, de resultarem
de dados objetivos e consistentes sobre o rumo futuro das economias mais
avançadas. Continua a ser necessária muita imaginação e até doentia pressentir
na informação disponível tensões inflacionárias a curto prazo. Summers é muito
arguto quando contrapõe, nas economias emergentes, ao risco identificado pelo
FED de instabilidade financeira determinada por comportamentos de euforia a sua
própria perceção de que o risco mais provável é antes o de falta de confiança e
o de aversão ao risco, debilitando assim o investimento.
Conforme o leitor mais atento pode antecipar, até aqui
esta matéria de receios e contra-receios está muito pouco fundamentada em
teoria económica. O que não deixa de me causar uma forte perplexidade. Quer
isto significar que a informação sobre a qual os bancos centrais tomam decisões
é ela própria volátil, diria o senso comum muito subjetiva. O mundo das
perceções, das expectativas, dos receios e dos riscos, mesmo que o possamos
adocicar com a bateria de indicadores que os bancos centrais tendem a associar às
suas decisões (veja-se, por exemplo, a evidência de que a taxa de desemprego já
não é o único indicador de monitorização do mercado de trabalho) padece de
subjetividade. E o que é curioso é que a teoria económica está mais com os que
duvidam da pressa do FED em subir taxas do que do seu contrário. Summers é
mortífero quanto a essa demonstração.
Gosto sobretudo de um dos argumentos e é necessário dar
conta de investigação recente de economistas do Banco de Inglaterra. Assim,
embora seja possível reavivar o interesse na chamada curva de Philips com o
estabelecimento de uma relação entre taxa de desemprego e taxa de inflação,
isso não significa que seja seguro utilizar relações construídas em evidências
passadas para uma visão prospetiva da mesma. Concretamente, se a taxa de
desemprego está a baixar dos 5% e assim aproximar-se do que poderia ser
designado de desemprego natural e incompressível, daí retirar a ideia de que
surgirão tensões inflacionárias parece um salto com rede de suporte cheia de
buracos. E tudo isto porque nada e ninguém nos garante que a situação de baixas
ou nulas taxas de juro seja a configuração de uma patologia que será vencida.
Entre a ideia de patologia e de um novo normal a distância pode ser irrisória.
E aqui entra a já referida investigação de dois economistas do Banco de Inglaterra, Lucasz Rachel e Thomas D. Smith. A sua investigação gira em torno
dos fundamentos que determinam a taxa de juro real a longo prazo, fazendo-o com
recurso à estimação da taxa global de juro neutral, já aqui referenciada noutro
post. É nas condições globais de formação de poupança e do investimento que os
dois economistas encontram as razões essenciais para uma descida tão acentuada
dessa taxa nos últimos 30 anos (cerca de 400 a 500 pontos percentuais). E se de
facto há forças estruturais que puxaram a taxa global de juro neutral para
baixo num período de tempo tão alargado seria avisado pensar que mais do que
uma patologia seja um novo normal que emerge.
Moral da história: não é certamente a teoria económica
que baseará a eventual subida de hoje, dia J, das taxas de juro de referência
do FED. 1-0 em desfavor da teoria económica e da sua capacidade de influenciar
decisões que afetam a economia mundial. Mas, em simultâneo, o que demonstrámos
hoje é que a teoria económica continua a potenciar melhores decisões, mesmo que
as não consiga infletir. Do mal, o menos. Há gente, muita, jovem e promissora
gente, que continua a produzir material mais importante do que discutir o sexo
dos anjos. Algum dia será ouvida. Summers compreendeu que os economistas do
Banco de Inglaterra lhes forneceram importantes elementos para progredir na
demonstração das suas intuições. A alavanca de disseminação do conhecimento em
decisão existe. O que é um primeiro passo, conhecida que é a audiência do
economista de Harvard.
Nota posterior
Já depois do texto atrás apresentado ter sido redigido
tive a confirmação de que, como era expectável, o FED após 7 anos aumentou a
taxa de juro de referência em 0,25 pontos percentuais, mas mantendo para a política
monetária uma abordagem muito acomodativa e com grandes cautelas sobre a
valoração da evolução da atividade económica americana. Tal como interpreto a tomada de posição pública do FOMC, tanto se poderá dizer que em função da
monitorização da economia novos pequenos aumentos poderão suceder-se como não. O texto e a intervenção de Janet Yellen foram de uma extrema cautela. Mas talvez a
principal novidade seja a opção por um novo instrumento de controlo de taxas de
juro, a chamada “overnight reverse repo”. Através deste instrumento,
determinadas entidades acreditadas, bancas e fundos do mercado monetário, podem
emprestar ao FED dinheiro por um dia em troca de títulos do tesouro que terão
de ser devolvidos no dia seguinte. Por esse parqueamento de dinheiro, a taxa
cobrada será de 0,25%, esperando o FED concorrência entre os operadores para
fazer elevar a taxa atingindo o nível de 0,25-0, 50% definido pelo FED. Cada um
das 65 entidades autorizadas pode parquear até 30 mil milhões de dólares. Estima-se
que estejam disponíveis cerca de 2 milhões de milhões de dólares de bilhetes do
Tesouro para assegurar estas operações. E desta sofisticação se faz a política
monetária na América.
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