terça-feira, 15 de outubro de 2013

BRUTAL E DESTRUIDOR DE REFORMAS CONSEQUENTES INICIADAS



Maria Luís, a tal que parece não partir um prato, anunciou uma das mais ‘ziguezagueantes’ danças do défice público, num exercício baralhado que os roda pés das televisões ainda tornaram mais complexo. Espremendo aquilo tudo, fica que o Governo iniciará, se o deixarem, o ano de 2014 com um défice projetado de 6,3% do PIB que terá de ser transformado em 4%. Brutal é a palavra e não parece haver alguém com bom senso económico que ache credível uma redução de tão larga magnitude. Brutal quanto mais que, apesar de algumas pinceladas de aumento de impostos em clientes até aqui praticamente intocáveis, como por exemplo, a redução de 50% do IMI sobre os Fundos Imobiliários (porque não uma redução total?), umas arranhadelas sobre os bancos e uma pequena canelada na energia (para chinês e Catroga protestarem), a fatura recai essencialmente sobre funcionários públicos e pensionistas do Estado. É verdade também que há algumas piscadelas de olho ao Tribunal Constitucional, algumas meramente formais como a do temporário (que para os portugueses mudou radicalmente de sentido nos últimos tempos), outras mais consistentes como a de não fazer coincidir os efeitos penalizadores da contribuição extraordinária de solidariedade e da convergência de regimes sobre as pensões do Estado abaixo de 5.000 euros (terei ouvido bem?). Mas a inconstitucionalidade paira soberanamente sobre dimensões cruciais deste orçamento, pelo que iremos assistir a uma completa instrumentalização da eventual tomada de posição daquele órgão no debate político que vai imediatamente seguir-se.
Brutal mas também trágico. Por dever de ofício, eu e a minha colega Pilar González terminámos hoje o paper que temos em conjunto sobre as consequências da crise e das políticas de austeridade sobre a incidência do Modelo Social Europeu em Portugal, ou se quiserem, sobre o Estado Social à moda portuguesa, a publicar num trabalho coletivo da OIT sob a coordenação de Daniel Vaughan-Whitehead. Graças sobretudo ao trabalho minucioso e extenuante da minha colega Pilar foi possível reconstruir a arquitetura do MSE a partir das aspirações constitucionais de 1976 e analisá-lo nas transformações que tem vindo a sofrer desde que a anemia do crescimento português começou a introduzir lógicas e preocupações de eficiência num sistema relativamente recente, contexto-dependente, desequilibrado e vulnerável. Suspeitávamos ou intuíamos o que iríamos encontrar. Mas é hoje para nós evidente que o memorando da Troika, as políticas de austeridade e a sua gestão e sua gestão incompetente (pela não adaptação a um contexto recessivo) e a própria inépcia desengonçada deste Governo mataram por completo o alcance de algumas reformas orientadas para a eficiência que vinham sendo introduzidas até ao dealbar da crise das dívidas soberanas. A procura de “retorno” orçamental no mais puro curto prazo introduziu uma verdadeira manta de retalhos onde se podia vislumbrar pelo menos uma trajetória (talvez demasiado tímida) para a correção da sustentabilidade do sistema nas suas diferentes manifestações. Perdeu-se o sentido de uma transformação. Ganhou-se a mais completa desestruturação e sobretudo destruiu-se um clima mínimo de confiança para tornar possíveis comportamentos contributivos para a resolução dos problemas.
Estou naturalmente curioso por duas coisas, pela reação dos pares que participam no projeto quanto ao argumento produzido sobre a situação concreta portuguesa e pela forma como o Tribunal Constitucional resistirá à mais pura e desenfreada chantagem que irá ser exercida sobre este órgão, seja pelo Governo, seja pelos papagaios e palhaços internacionais que têm animado este circo. Um grande teste à solidez do nosso edifício democrático.

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