Maria Luís, a tal que parece não partir um prato,
anunciou uma das mais ‘ziguezagueantes’ danças do défice público, num exercício
baralhado que os roda pés das televisões ainda tornaram mais complexo. Espremendo
aquilo tudo, fica que o Governo iniciará, se o deixarem, o ano de 2014 com um défice
projetado de 6,3% do PIB que terá de ser transformado em 4%. Brutal é a palavra
e não parece haver alguém com bom senso económico que ache credível uma redução
de tão larga magnitude. Brutal quanto mais que, apesar de algumas pinceladas de
aumento de impostos em clientes até aqui praticamente intocáveis, como por
exemplo, a redução de 50% do IMI sobre os Fundos Imobiliários (porque não uma
redução total?), umas arranhadelas sobre os bancos e uma pequena canelada na
energia (para chinês e Catroga protestarem), a fatura recai essencialmente
sobre funcionários públicos e pensionistas do Estado. É verdade também que há
algumas piscadelas de olho ao Tribunal Constitucional, algumas meramente
formais como a do temporário (que para os portugueses mudou radicalmente de
sentido nos últimos tempos), outras mais consistentes como a de não fazer
coincidir os efeitos penalizadores da contribuição extraordinária de
solidariedade e da convergência de regimes sobre as pensões do Estado abaixo de
5.000 euros (terei ouvido bem?). Mas a inconstitucionalidade paira
soberanamente sobre dimensões cruciais deste orçamento, pelo que iremos
assistir a uma completa instrumentalização da eventual tomada de posição
daquele órgão no debate político que vai imediatamente seguir-se.
Brutal mas também trágico. Por dever de ofício,
eu e a minha colega Pilar González terminámos hoje o paper que temos em conjunto sobre as consequências da crise e das
políticas de austeridade sobre a incidência do Modelo Social Europeu em
Portugal, ou se quiserem, sobre o Estado Social à moda portuguesa, a publicar
num trabalho coletivo da OIT sob a coordenação de Daniel Vaughan-Whitehead. Graças
sobretudo ao trabalho minucioso e extenuante da minha colega Pilar foi possível
reconstruir a arquitetura do MSE a partir das aspirações constitucionais de
1976 e analisá-lo nas transformações que tem vindo a sofrer desde que a anemia
do crescimento português começou a introduzir lógicas e preocupações de eficiência
num sistema relativamente recente, contexto-dependente, desequilibrado e vulnerável.
Suspeitávamos ou intuíamos o que iríamos encontrar. Mas é hoje para nós evidente
que o memorando da Troika, as políticas de austeridade e a sua gestão e sua
gestão incompetente (pela não adaptação a um contexto recessivo) e a própria inépcia
desengonçada deste Governo mataram por completo o alcance de algumas reformas
orientadas para a eficiência que vinham sendo introduzidas até ao dealbar da crise
das dívidas soberanas. A procura de “retorno” orçamental no mais puro curto
prazo introduziu uma verdadeira manta de retalhos onde se podia vislumbrar pelo
menos uma trajetória (talvez demasiado tímida) para a correção da
sustentabilidade do sistema nas suas diferentes manifestações. Perdeu-se o
sentido de uma transformação. Ganhou-se a mais completa desestruturação e
sobretudo destruiu-se um clima mínimo de confiança para tornar possíveis
comportamentos contributivos para a resolução dos problemas.
Estou naturalmente curioso por duas coisas, pela
reação dos pares que participam no projeto quanto ao argumento produzido sobre
a situação concreta portuguesa e pela forma como o Tribunal Constitucional
resistirá à mais pura e desenfreada chantagem que irá ser exercida sobre este órgão,
seja pelo Governo, seja pelos papagaios e palhaços internacionais que têm
animado este circo. Um grande teste à solidez do nosso edifício democrático.
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