quarta-feira, 23 de outubro de 2013

RUI POR RUI


Por razões que julgo largamente compreensíveis, decidira que aqui passaria ao largo da viragem política hoje consumada na minha cidade natal com o adeus de Rui Rio e a posse de Rui Moreira. Mas um telefonema que recebi de uma grande senhora (Piedade Vallada) deitou por terra as minhas certezas quanto à justeza daquela decisão inicial. E aqui estou, portanto.

Primeiro que tudo para assumir publicamente os erros políticos em que incorri ou que partilhei, quer no plano da intervenção quer no plano da análise, mais uma vez comprovando que a proximidade perturba a visão. Embora continue plenamente convencido que conheço muito bem o Porto, onde nasci e vivi a maior parte da vida (pessoal, académica, profissional, cívica, desportiva, etc.), e não esteja em nada arrependido das posições/opções que fui tomando na matéria em causa desde os já distantes tempos da primeira candidatura de Fernando Gomes.

Foco-me agora no processo eleitoral mais recente para admitir sem rebuço o caráter grosseiro do meu engano ao não ter percebido que a conjuntural/acidental conjugação entre os níveis excessivos de endividamento atingidos pelo País e a desastrada ação governativa protagonizada pelo PSD de Passos iriam no Porto abrir caminho a qualquer alternativa que castigasse Menezes (que noutras condições seria certamente um vencedor relativamente fácil) e não premiasse Pizarro (governante de Sócrates, emanação do inominável PS-Porto, merecedor dos favores de Seguro).

Com o acabado de referir não pretendo em nada desmerecer o novo presidente da Câmara, que fez uma campanha inteligente e que, sobretudo, tinha sabido fazer atempadamente uma aproximação eficaz a Rio – para quem entenda que a política é a arte do possível, Rui Moreira foi mesmo um verdadeiro mestre. No que me toca, e sendo ele a personalidade que a partir de hoje vai liderar os destinos do Porto nos próximos quatro anos, só tenho que lhe desejar o melhor (com óbvia extensão a toda a sua equipa de vereação, mas sem esquecer uma menção especial àquele que é um dos grandes senhores da Cidade, o Arq. Manuel Correia Fernandes) e desde já registar o promissor arejo do seu primeiro discurso formal.

Concluo com o presidente cessante, ficando-me pela saudação democrática que é devida a um adversário que foi sabendo estar, à sua maneira muito própria, com os dois pés no Porto ao longo destes doze anos. Porque se dele divirjo em quase tudo quanto são as escolhas essenciais (sobrarão talvez alguns temas ditos fraturantes), uma certa comandita que por aí anda ajudou a que aumentasse incomensuravelmente a minha tolerância aos seus tiques (irritantes, provincianos, autoritários, whatever... mas nunca totalmente alheados de referenciais básicos). Ao jeito de um balanço crítico mais completo, recorro com vantagem e a respetiva vénia à reprodução de uma lapidar crónica (“Doze anos é muito tempo, dr. Rui Rio”) ontem assinada pelo Manuel Carvalho no “Público”.


Rui Rio deixa hoje a Câmara do Porto, onde passou os últimos 12 anos. Foi o presidente mais longevo no município desde a era em que o Porto liberal e radical impôs o liberalismo ao país. Não deixará para a posteridade uma aura de revolução e de modernidade. Não deixará ideias, nem projectos. Não deixará obras emblemáticas e perenes como o Metro, não deixará um lastro cosmopolita como o do Porto Capital Europeia da Cultura, não deixará a cidade inscrita na lista do Património Mundial como o socialista Fernando Gomes, que governou a Câmara nos anos 90. Mas se não deixa obra, Rio também não deixou dívida. O que não é coisa pouca nos dias que correm.
Se há algum sinal político que é obrigatório exaltar no dia em que Rui Rio deixa os paços do concelho é essa visão premonitória da catástrofe da dívida e do défice. Não foi um acaso. O reconhecimento da urgência de uma dieta financeira após década e meia de excesso aconteceu logo na sua primeira campanha eleitoral. Rio constatou o problema, mas esse mérito também o teve Durão Barroso ou a sua ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite. Mas enquanto uns se lamuriavam sobre o país de tanga, Rui Rio atacou de frente o problema. Congelou investimentos, cortou drasticamente nos apoios, reorganizou de alto a baixo os serviços municipais, combateu implacavelmente o laxismo nos serviços. Hoje, a Câmara do Porto é um exemplo para o país. Se esse exemplo tivesse sido repetido em tempo certo, certamente não estaríamos a discutir a iminência de um segundo resgate.
É esta aura de sobriedade e de rigor que concedem a Rui Rio a imagem de homem providencial. Os portugueses estão fartos de políticos palavrosos, de vendedores de ilusões, de traficantes de interesses, de homens públicos que tremem à primeira ameaça e cedem à segunda pressão. Rio não é, de todo, assim. O que é uma vantagem. Mas, por falta de tempero, é também o seu principal defeito. Na gestão de um município, mesmo com a dimensão do Porto, esse defeito que torna a obstinação em cegueira, a convicção em arrogância, e assertividade em despotismo é facilmente diluível. No governo de um país, muito dificilmente o será. O rigor e a inflexibilidade com que geriu as contas e puniu os desmandos na Câmara perderam parte do seu sentido e valor com a sua incapacidade de aceitar o debate e a divergência, com a sua impúdica propensão para se fazer promover em dezenas de fotografias no boletim municipal, com o seu injustificável aval aos ataques, por vezes fulanizados, a críticos e opositores nos painéis publicitários da Câmara.
Hoje já poucos se lembram dos dias em que Rui Rio queria erradicar os arrumadores de automóveis - missão que inapelavelmente falhou; dos tempos em que dizia querer tratar dos pobres para evitar que os pobres e excluídos tratassem de “nós”; da política de terra queimada que decretou em relação a todas as heranças dos seus antecessores, fossem boas ou más:  da Porto Capital da Cultura, do Plano de Pormenor das Antas, das negociações para a construção do Parque da Cidade; da sua deliberada e ostensiva guerra a todos os sectores da Cultura, muitas vezes em clara retaliação aos que desde o primeiro momento vituperaram o seu primarismo argumentativo sobre as artes; de todas as direcções de todos os jornais, sujeitas a pressões que chegaram a tentativas de impor aos accionistas a sua demissão; da condenação do sistema judicial que se arrogava o direito de interpretar as leis de forma diferente da sua.
Com o tempo, Rui Rio tornou-se mais aberto, mais plural, deixou de se limitar pelas fronteiras da Circunvalação, começou a falar ao país vendo que o país estava disposto a ouvi-lo. O seu terceiro mandato foi muito melhor que o segundo e o segundo muito melhor que o primeiro. No processo de aprendizagem das vitórias sobre Fernando Gomes, sobre Francisco Assis e sobre Elisa Ferreira ganhou segurança e confiança.  Deixou de ser um autarca tão acossado, perseguido pelos jornalistas, pelos juízes, por Pinto da Costa e pelos perigosos actores culturais. Ganhou confiança, pôde descer à rua. Até o seu chefe de gabinete, um ex-director do Comércio do Porto, meio cardeal Richelieu, meio Rasputin, foi melhorando com o tempo.
Rio deixa ao fim de 12 anos a casa arrumada, as contas em dia e um enorme vazio entre a autarquia e uma grande maioria dos portuenses.  Deixa os bairros municipais limpos e compostos, mas o Bolhão decrépito.  Deixa as indemnizações pela sua megalomania no Parque da Cidade pagas, mas jamais conseguirá explicar o fracasso na gestão do Teatro Rivoli, que Filipe Lá Féria usou e descartou a seu bel-prazer. O Porto que se modernizou, o Porto da Universidade, de Serralves, da Casa da Música, das Galerias de Paris, do Palácio da Bolsa ou do Estádio do Dragão fez-se nas suas costas ou contra ele. A cidade moderna e aberta ao mundo, o Porto culto, irreverente e cosmopolita jamais se reviu no seu conceito de “cidade de carneirinhos” que na década de 1990 Fernando Gomes tanto combateu.
Rui Rio sai e à sua espera está provavelmente uma carreira mais alta na política. A cidade que agora deixa tem sem dúvida muito que lhe agradecer. A vitória de Rui Moreira exprime, em parte, um tributo dos portuenses à sua gestão. Mas presente-se também no ar uma brisa de frescura. Uma janela aberta. Doze anos de governação defensiva, sem imaginação e sem brilho, sem pelouro da Cultura e sem um discurso de ousadia e modernidade são muitos anos. Rio sai com um relatório e contas brilhante e exemplar. Sai também sob o clima de uma apagada e vil tristeza que o impedem de inscrever o seu nome entre as glórias do poder municipal portuense. Bendita lei da limitação dos mandatos.

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