domingo, 9 de fevereiro de 2014

IDEIAS, INTERESSES OCULTOS E POLÍTICA ECONÓMICA



Como é conhecido, dissemos ao que vínhamos, a relação entre os interesses e a política económica, atravessando diametralmente o universo conflitual ou cooperativo entre o público e o privado, ocupa um lugar de destaque nas aventuras deste blogue. A obra de Hirschman que constitui um dos pilares das referências que nos trouxeram até aqui recuperou decisivamente o tema dos interesses como variável de interpretação das orientações da política económica e das dinâmicas de intervenção dos indivíduos na vida social em geral.
É por isso que o meu radar de acompanhamento da literatura e da blogosfera económica é sensível a reaparecimentos do tema, sobretudo quando eles emergem a partir de personalidades que me merecem confiança intelectual.
Dani Rodrik acaba de publicar no Journal of Economic Perspetives (volume 28, número 1, Winter 2014), agora em consulta digital aberta, um artigo intitulado “When Ideas Trump Interests: Preferences, Worldviews and Policy Innovations”. Rodrik ocupa presentemente a cátedra Alberto O. Hirschman na School of Social Science do Institute for Advanced Study de Princeton, New Jersey. Quando o artigo passou pelas malhas do meu radar imaginei que de algum modo a obra de Hirschman fosse referenciada. Mas não, o artigo navega em outras referências bibliográficas mais recentes e não é menos importante por isso.
O objetivo de Rodrik é ir além da conhecida relação entre interesses e política económica, assumindo os primeiros a forma também conhecida de elites, lobbies e rentistas, já bastante documentada na literatura. Por exemplo, em Portugal, embora o debate não tenha a elevação de ir até à literatura de suporte, invoca-se frequentemente a força de captura do Estado por alguns grupos económicos instalados na produção de “facilities” em Portugal para explicar, por exemplo, o preço relativo anomalamente elevado para o nosso nível de desenvolvimento económico da energia e das telecomunicações. Aplicando o mesmo referencial, poderíamos também concluir que a captura do Estado por parte do sistema financeiro (é só ver a composição do Ministério das Finanças e forças associadas) explicaria em parte o forte conteúdo redistributivo em desfavor do trabalho que a abordagem à crise da dívida tem determinado.
Onde Rodrik pretende chegar merece alguma reflexão, já que intuo que se trata de ideias relevantes para se encontrar saídas para esta situação asfixiante em que nos encontramos. Rodrik não nega que compreender hoje a política económica sem atender aos chamados “vested interests” (interesses ocultos e não democraticamente escrutinados) nos conduzirá a um profundo vazio explicativo. Mas o que Rodrik contesta é que tais interesses sejam o determinante último dos resultados atingidos pela política económica.
Para surpresa minha, agradável confesso por Rodrik invocar o que foi o meu último tema de docência universitária, ele integra o mundo das ideias (conhecimento) numa analogia com a relação entre invenção e tecnologia.
Sem entrar em complexos aprofundamentos teóricos a que o tema nos conduziria, Rodrik discute que a relação entre interesses e os resultados da política económica possa considerar-se totalmente mapeada. Segundo ele, as ideias influenciam o que os interesses pretendem maximizar, o modo como o mundo funciona (contexto em que os interesses operam) e os instrumentos que os grupos podem mobilizar para fazer chegar mais longe os interesses. No fundo, o que Rodrik pretende demonstrar é que as ideias podem moldar os interesses e assim explicar melhor a divergência por vezes observada entre o que deveria ser feito (o que a teoria da política económica recomendaria) e o que acaba por ser feito (os resultados da política económica).

Uma simples citação esclarecerá a minha intuição de que temos aqui matéria para aplicar ao lio em que nos encontramos:
Muitos observadores (…) argumentaram que as políticas que geraram a crise foram o resultado dos poderosos interesses bancários e financeiros para se fazerem ouvir, o que se afigura uma aplicação direta da teoria dos interesses especiais. Todavia, sem a onda de ideias “no ar” que favoreceu a liberalização financeira e a autoregulação e enfatizou a impossibilidade (ou não desejabilidade) da regulação governamental, estes interesses ocultos não teriam tido a força que assumiram. Além do mais, os interesses poderosos raramente se afirmam em democracia defendendo nua e cruamente os seus interesses. Pelo contrário, procuram a legitimação dos seus argumentos argumentando que essas políticas são no interesse público. O argumento em favor da desregulação financeira não era que seria bom para Wall Street, mas antes que era bom para Main Street.”
Ou seja, temos aqui pano para mangas para aplicação ao burgo. Na minha interpretação, a maioria governativa atual é o elemento de propaganda e de disseminação das ideias que alguns interesses organizados necessitam para não ter que, em democracia e de forma clara, argumentar com os seus próprios interesses. O governo é uma espécie de ventríloquo desses interesses, algum dia será recompensado por isso (basta seguir nos próximos tempos as trajetórias de alguns elementos depois de abandonar funções governativas). A ultravalorização do empreendedorismo, a via punitiva para as gerações que representam o passado, a permanente invocação do pretenso interesse dos contribuintes, quando em simultâneo se atiram os cães a estes últimos, a híper valorização do utilitarismo económico do pensamento científico, a sobrerepresentação do mundo das empresas desconhecido para alguns dos seus arautos são exemplos deste serviço expresso das ideias para os interesses. Aproximamo-nos, por esta via, do pensamento crítico que Pacheco Pereira tem vindo a produzir sobre a prática governativa atual, para má sorte do governo que não encontra maneira de o contrariar.
O artigo de Rodrik tem também uma outra interpretação, mais inventiva e aberta, segundo a qual as ideias podem também representar uma via de produção de resultados inesperados face ao contexto de interesses em que a política económica se produz. Mas fica para outra oportunidade.

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