Como é conhecido, dissemos ao que vínhamos, a
relação entre os interesses e a política económica, atravessando diametralmente
o universo conflitual ou cooperativo entre o público e o privado, ocupa um
lugar de destaque nas aventuras deste blogue. A obra de Hirschman que constitui
um dos pilares das referências que nos trouxeram até aqui recuperou
decisivamente o tema dos interesses como variável de interpretação das orientações
da política económica e das dinâmicas de intervenção dos indivíduos na vida
social em geral.
É por isso que o meu radar de acompanhamento da
literatura e da blogosfera económica é sensível a reaparecimentos do tema,
sobretudo quando eles emergem a partir de personalidades que me merecem
confiança intelectual.
Dani Rodrik acaba de publicar no Journal of Economic Perspetives (volume
28, número 1, Winter 2014), agora em consulta digital aberta, um artigo
intitulado “When Ideas Trump Interests:
Preferences, Worldviews and Policy Innovations”. Rodrik ocupa presentemente a cátedra Alberto
O. Hirschman na School of Social Science do
Institute for Advanced Study de
Princeton, New Jersey. Quando
o artigo passou pelas malhas do meu radar imaginei que de algum modo a obra de
Hirschman fosse referenciada. Mas não, o artigo navega em outras referências
bibliográficas mais recentes e não é menos importante por isso.
O objetivo de Rodrik é ir além da conhecida relação
entre interesses e política económica, assumindo os primeiros a forma também
conhecida de elites, lobbies e
rentistas, já bastante documentada na literatura. Por exemplo, em Portugal,
embora o debate não tenha a elevação de ir até à literatura de suporte, invoca-se
frequentemente a força de captura do Estado por alguns grupos económicos
instalados na produção de “facilities”
em Portugal para explicar, por exemplo, o preço relativo anomalamente elevado
para o nosso nível de desenvolvimento económico da energia e das telecomunicações.
Aplicando o mesmo referencial, poderíamos também concluir que a captura do Estado
por parte do sistema financeiro (é só ver a composição do Ministério das
Finanças e forças associadas) explicaria em parte o forte conteúdo redistributivo
em desfavor do trabalho que a abordagem à crise da dívida tem determinado.
Onde Rodrik pretende chegar merece alguma reflexão,
já que intuo que se trata de ideias relevantes para se encontrar saídas para
esta situação asfixiante em que nos encontramos. Rodrik não nega que
compreender hoje a política económica sem atender aos chamados “vested interests” (interesses ocultos e
não democraticamente escrutinados) nos conduzirá a um profundo vazio
explicativo. Mas o que Rodrik contesta é que tais interesses sejam o
determinante último dos resultados atingidos pela política económica.
Para surpresa minha, agradável confesso por
Rodrik invocar o que foi o meu último tema de docência universitária, ele
integra o mundo das ideias (conhecimento) numa analogia com a relação entre
invenção e tecnologia.
Sem entrar em complexos aprofundamentos teóricos
a que o tema nos conduziria, Rodrik discute que a relação entre interesses e os
resultados da política económica possa considerar-se totalmente mapeada. Segundo
ele, as ideias influenciam o que os interesses pretendem maximizar, o modo como
o mundo funciona (contexto em que os interesses operam) e os instrumentos que
os grupos podem mobilizar para fazer chegar mais longe os interesses. No fundo,
o que Rodrik pretende demonstrar é que as ideias podem moldar os interesses e
assim explicar melhor a divergência por vezes observada entre o que deveria ser
feito (o que a teoria da política económica recomendaria) e o que acaba por ser
feito (os resultados da política económica).
Uma simples citação esclarecerá a minha intuição
de que temos aqui matéria para aplicar ao lio em que nos encontramos:
“Muitos observadores
(…) argumentaram que as políticas que geraram a crise foram o resultado dos
poderosos interesses bancários e financeiros para se fazerem ouvir, o que se
afigura uma aplicação direta da teoria dos interesses especiais. Todavia, sem a
onda de ideias “no ar” que favoreceu a liberalização financeira e a autoregulação
e enfatizou a impossibilidade (ou não desejabilidade) da regulação
governamental, estes interesses ocultos não teriam tido a força que assumiram. Além
do mais, os interesses poderosos raramente se afirmam em democracia defendendo
nua e cruamente os seus interesses. Pelo contrário, procuram a legitimação dos
seus argumentos argumentando que essas políticas são no interesse público. O
argumento em favor da desregulação financeira não era que seria bom para Wall
Street, mas antes que era bom para Main Street.”
Ou seja, temos aqui pano para mangas para aplicação
ao burgo. Na minha interpretação, a maioria governativa atual é o elemento de
propaganda e de disseminação das ideias que alguns interesses organizados
necessitam para não ter que, em democracia e de forma clara, argumentar com os
seus próprios interesses. O governo é uma espécie de ventríloquo desses
interesses, algum dia será recompensado por isso (basta seguir nos próximos
tempos as trajetórias de alguns elementos depois de abandonar funções
governativas). A ultravalorização do empreendedorismo, a via punitiva para as
gerações que representam o passado, a permanente invocação do pretenso
interesse dos contribuintes, quando em simultâneo se atiram os cães a estes últimos,
a híper valorização do utilitarismo económico do pensamento científico, a
sobrerepresentação do mundo das empresas desconhecido para alguns dos seus
arautos são exemplos deste serviço expresso das ideias para os interesses. Aproximamo-nos,
por esta via, do pensamento crítico que Pacheco Pereira tem vindo a produzir
sobre a prática governativa atual, para má sorte do governo que não encontra
maneira de o contrariar.
O artigo de Rodrik tem também uma outra
interpretação, mais inventiva e aberta, segundo a qual as ideias podem também
representar uma via de produção de resultados inesperados face ao contexto de
interesses em que a política económica se produz. Mas fica para outra
oportunidade.
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