segunda-feira, 28 de abril de 2014

BANCOS E CRIAÇÃO MONETÁRIA

(Martin Wolf)


Vários economistas têm salientado que, apesar da magnitude e das consequências penosas que a crise financeira de 2007-2008 provocou, o sistema financeiro pouco mudou. Talvez a sofisticação da pouco transparente inovação financeira com produtos que o vulgar dos mortais não compreende como funcionam (em sessão pública das comemorações do centenário da República em que participei, Santos Silva afirmou que uma das razões para o BPI ter abandonado a praça de Nova Iorque foi a incapacidade de perceber a sofisticação financeira daquele mercado) tenha sido impedida de ganhos de velocidade e de generalização, mas a verdade é que não desapareceu. Talvez hoje seja mais fácil e menos conflitivo falar de limites à livre circulação de capitais, mas a globalização financeira não desapareceu. Talvez hoje exista uma maior predisposição para compreender a necessidade imperiosa de contrariar a chamada banca-sombra, a tal que atua como se fosse banca privada normal mas não tem regulação similar por parte dos bancos centrais, mas ela não foi suprimida. Neste contexto, é compreensível o desânimo de alguns economistas com a ausência de consequências da crise financeira, sobretudo de personalidades como Stiglitz que sempre alertaram para a necessidade de estabelecer uma rigorosa diferença entre os ganhos privados da sofisticação financeira e o retorno social dos mesmos, sendo profundamente cético quanto à possibilidade deste último superar os primeiros. Veja-se, por exemplo, a notável conferência proferida por Stiglitz este mês de abril (dia 15) na Conferência dos Mercados Financeiros do Federal Reserve Bank of Atlanta, designada de “Tapping the Brakes: Are Less Active Markets Safer and Better for the Economy?”. É verdade que o pânico foi sustido de forma eficaz. Mas os riscos de reincidência não desapareceram.
Ora, nas duas últimas semanas surgiram algumas posições de peso apontando para grossas revoluções na organização do sistema financeiro. Tal não significa que essas propostas mais ou menos revolucionárias façam rapidamente o seu caminho e gerem efetivas e radicais mudanças no sistema financeiro.
Uma das matérias que está em debate nos EUA, claro está, pois o conservadorismo europeu está instalado e as mentes enferrujadas, é o da eventual decisão de negar à banca privada a potencialidade de criar moeda mediante abertura de contas de depósito através da concessão dos seus empréstimos, obrigando-a à realização de reservas a 100% dos seus depósitos. A criação de moeda através das atividades de concessão de crédito por parte dos bancos privados constitui dos mistérios menos compreendidos por parte da opinião pública da economia monetária e tem dado origem a sucessivos debates entre os economistas ao longo do tempo. É esse mesmo mistério que tem estado na base do paradoxo vivido nas economias desenvolvidas que consiste no facto do quantitative easing beneficiar sobretudo o setor bancário e este não repercutir esses benefícios em crédito à economia real, não criando por isso moeda utilizável pela economia das empresas.
Creio que a primeira proposta recente de separação entre a criação de moeda (que caberia à banca central e pública) e o financiamento da economia (no qual a banca privada atuaria apenas como entidade de intermediação financeira pelo qual receberia um dado preço) foi apresentada pelo insuspeito (na perspetiva dos mercados) Martin Wolf do Financial Times. Com a imposição de 100% de reservas obrigatórias para os depósitos, as duas funções desempenhadas pela banca privada de criação monetária e de rede de pagamentos limitar-se-ia a esta última. A criação monetária passaria a ser um monopólio público.
O que para mim foi uma grande surpresa foi esta ideia de Wolf ter surgido também pela pena de um ainda mais insuspeito economista para os mercados, John Cochrane (“Toward a run free financial system”). Mas pelo artigo de Wolf e depois pelo incontornável House of Debt de Atif Mian (PrincetonUniversity) e Amir Sufi (Chicago University), compreendi que a ideia não é nova e que foi proposta em 1939, imagine-se por um conjunto de economistas da Escola de Chicago, onde pontuava o grande economista monetário de todos os tempos Irving Fisher.
1939 não é um ano qualquer, vivíamos então as sequelas da crise devastadora de 1930 também ela iniciada por uma crise de pânico financeiro. Não será por acaso que em 2014 as ideias do grupo pontuado por Irving Fisher são retomadas. Afinal, as ideias económicas não são insensíveis aos grandes eventos da história, o que não significa que a rotura vença sempre. A inércia do conservadorismo por vezes não arreda pé, mesmo com custos de grande expressão. Este tema da transposição das ideias para a decisão é de facto apaixonante.
Não deixam por isso de ser curiosas as reservas de Krugman a esta possibilidade, baseadas sobretudo na possibilidade de tal medida empurrar a banca privada para o estatuto da chamada banca-sombra.

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