Por razões de circunstancial coincidência, acedi à escrita de Lídia Jorge (LJ) desde que ela foi tornada pública com aquele “O Dia dos Prodígios” que em 1980 integrou o que alguns classificaram de nova fase da literatura portuguesa e me acompanhou na temporária incursão académica que realizei em Paris. Continuei depois a seguir a romancista durante vários anos, tendo designadamente apreciado a leitura de “O Cais das Merendas” e “A Costa dos Murmúrios”. Em momento que já não consigo precisar, nem sei mesmo explicitar se foi em face de algum excerto mais intrusivo ou na sequência de alguma intervenção pública menos feliz, ter-me-ei cansado e o meu interesse por LJ foi ciclicamente esmorecendo.
LJ continuou a publicar regularmente, ao mesmo tempo que tem andado por aí sempre assumindo tomadas de posição civicamente fundamentadas. Mas só agora fui particularmente estimulado para a reencontrar, seguramente ajudado por algumas excelentes entrevistas que a autora concedeu à comunicação social. Como a do “Jornal de Negócios” – “Continuamos a não pronunciar em voz alta o que pensamos”; “Estamos a ser punidos pela indolência que é a nossa luxúria”; “A passividade acaba por transformar os portugueses em seres de sujeição. E em seres de ardil. Olhamos para o nosso carrasco com piedade e compreensão absoluta.” – e a do “Jornal i” – “Os livros não têm de ter esperança. A literatura não serve para dar esperança, mas para reclamá-la”; “Os militares de Abril não são vítimas, eles próprios se deixaram envolver num pacto de indolência”; “Com o 25 de Novembro chegou uma razoabilidade tristonha, mas era uma razoabilidade necessária”.
Mas foi a entrevista a Andreia Azevedo Soares, na “Ípsilon” do “Público”, que me serviu de detonador principal. Porque por lá se falava de “um romance empurrado pela tristeza que Lídia Jorge sente ao ver o país tombar” mas também da “esperança de que brote ‘uma nova canção no mundo’”. E, ainda, porque por lá assim se comentava acerca do novo romance: “é como se a escritora viesse agora fazer o balanço de uma promessa, e responder às perguntas colocadas pela sua própria obra”. Foi pois com uma espécie de renovado impulso de atração por LJ que me decidi num ápice a comprar esse tal último livro e a pôr-me a lê-lo quase compulsivamente.
Um pressentimento que, a despeito de algo inexplicável, acabou por resultar inteiramente confirmado ou, talvez até, excedido, tanto que me revi em muito do que a sensibilidade e capacidade de observação de LJ nos transmite. Como quando a protagonista Ana Maria desabafa: “Por mim, há muito que me era claro que a república da pena era feita de pena e não de direito, porque no centro dela havia gente lúcida que por artes mágicas transformava a clarividência em desdém, e as duas unidas pariam imobilidade e lonjura.” Ou na síntese daquela viúva que exclamava: “o meu marido dizia que era tudo a brincar, que o Verão quente era a Terça-Feira de Carnaval de um país que sempre tinha tido muita Sexta-Feira Santa e nenhuma Páscoa”.
Simplesmente imperdível a leitura desta LJ depurada, escrevendo só sobre o que é essencial ou sobre a essência das coisas em que acredita...
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