sábado, 5 de abril de 2014

GASPAR POR SI PRÓPRIO



Depois de vários ameaços, chegou finalmente o dia em que cumpro o prometido de aqui deixar alguns comentários e reflexões em torno do livro que Maria João Avillez oportunamente resolveu dedicar a Vítor Gaspar (VG), com a anuência do próprio bem expressa no direto das longas entrevistas que servem de base ao trabalho. Onze capítulos em que VG pôde dizer quase sem contraditório tudo o que de melhor entendeu sobre si próprio, a sua carreira e a sua passagem pelo Governo, do “estudante” ao “intelectual” passando pelo “espectador”, pelo “economista”, pelo “negociador”, pelo “europeu”, pelo “alto funcionário”, pelo “estratega”, pelo amigo institucional” e pelo “governante”, sem esquecer ainda “a carta” com que bateu a porta e que agora sujeita a um rebuscado revisionismo (não sem declarar, na maior das inocências, que “em meu entender a carta não tem absolutamente nada no texto que justifique essa interpretação [muita perplexidade sobre o modo como o ministro das Finanças viu esse primeiro ciclo]).

A primeira coisa que importa relevar é o facto de VG evidenciar lapidarmente algo que já se lhe ia reconhecendo: uma finíssima inteligência e uma ampla preparação cultural. Mas VG, como bom “escorpião” que é, surge também senhor de uma agenda pessoal predominante e que persegue incansavelmente, mesmo quando procura não deixar facilmente a descoberto quanto “água parada também é funda”. Outras caraterísticas que ressaltam, apesar dos esforços de VG para as disfarçar a ponto de elas até quase parecerem pormenores de escassa relevância ou grande vulgaridade, ajudam ainda a compor uma personalidade dotada de um elevado teor de complexidade – ilustro-as com as suas variadas manifestações de alguma que não excessiva vaidade (“eu nunca tive dificuldade em saber o que ia ocorrendo nesse vários contactos com as organizações internacionais”), a sua especial preocupação em se exibir como um cidadão mais normal e tolerante do que convencido e arrogante (“não tenho qualquer ambição de perceber a realidade através de um paradigma único”, diz o homem que até já votou Mário Soares!) e o seu abuso de uma suposta superioridade intelectual e de conhecimentos para servir a mensagem que elege e visa dirigir em cada momento (do tiro no pé teimosamente assumido a propósito da TSU – “a grelha de leitura [de rejeição] parecia saída de um documento socialista do século XIX” – à condenação do PEC IV por inutilidade – “não tenho conhecimento específico sobre os contactos bilaterais entre o primeiro-ministro português e a chanceler alemã” e “basta olhar para a evolução das taxas de juro e para a dificuldade de obter financiamentos, durante o primeiro semestre de 2011, mesmo durante 2010 e mesmo já antes, para não ter qualquer dúvida sobre isso”).


Desloquemo-nos agora para aquilo que me pareceu que VG realmente quis fazer passar neste seu testemunho (ou testamento a meio de percurso?), focando-me sobretudo nas questões de mais clara incidência política em que foi um protagonista central. Resumo-o, naturalmente sob minha inteira responsabilidade, em nove grandes tópicos:

· o diagnóstico da crise portuguesa para uso curricular externo: “Mas também me convencera de que a nossa participação aceleraria a integração e o desenvolvimento financeiro. Estava – e continuo – convencido de que o ajustamento macroeconómico à integração monetária é dominado por determinantes financeiros”, “as exigências de estabilidade decorrentes da participação na área do euro foram menorizadas” e “dado que Portugal foi incapaz de adaptar as suas formas de regulação interna às exigências da União Monetária, originou-se uma crise que nunca podia ser gerida de forma ordeira sem auxílio internacional”;

· o diagnóstico da crise portuguesa para uso doméstico: “o problema português foi criado em Portugal”, “o sistema político português agiu como se ignorasse os riscos e colocou os portugueses em situação de risco iminente”, “Portugal entrou numa crise por indisponibilidade de financiamento externo privado”, “numa crise de financiamento externo, estou convencido de que o país devedor em crise tem inicialmente que dar prioridade à restauração da credibilidade” e “aquele princípio político fundamental na UE, o princípio do primado da dimensão nacional da política na União Europeia”;

· o Programa e afins em versão politiqueira luso-portuguesa: “A minha avaliação nessa altura e a minha avaliação hoje é que a determinação política do primeiro-ministro na transformação estrutural do país e no sucesso do Programa de Ajustamento é o garante da concretização interna dos requisitos do ajustamento, e é, portanto, também o garante fundamental da imagem externa do país”, “foi muito marcante para mim uma entrevista do primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho, ao Financial Times. Um documento notável de síntese do programa do novo Governo” e “uma Constituição é bem-sucedida quando facilita a adaptação de uma sociedade às circunstâncias que enfrenta”;

· o autor, a inspiração e a obra: “A minha preocupação era a necessidade de garantir a solvência do país”, “the job had to be done”, “conseguimos sempre, em termos de uma boa relação com as organizações representadas na Troika e os credores internacionais, alterar atempadamente os limites quantitativos, de forma a assegurar que, no momento da sua verificação, os limites do Programa fossem respeitados”, “a forma e o momento da saída foram preparados cuidadosamente para minimizar os efeitos” e “no início do ano convenci-me de que com a estabilização financeira seria possível facilitar a transição para nova etapa do ajustamento”;

· o pretexto da demissão (ou de como me livrar disto o mais possível em bom): “O motivo mais decisivo, o catalisador para a necessidade de sair, foi a impossibilidade de concluir atempadamente o sétimo exame regular (...). Porque era preciso um mandato político que permitisse esse encerramento”, “Esse adiamento teve custos políticos internacionais para o país (...). A capacidade de julgamento do negociador português e a sua autoridade foram claramente postos em dúvida. Não podia continuar nesse papel” e “Está claríssimo nesse comunicado [em que o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros apresenta a sua demissão] que existe a vontade de promover uma alteração de rumo (...). O que claramente mostra que há uma diferença de concepção sobre esta fase do Programa de Ajustamento e a orientação política adequada nesse contexto”;

· a assunção de responsabilidades q.b. (ou de como me livrar disto o mais possível a bem): “Os elementos do Programa de Ajustamento que eu, como ministro das Finanças, escolhi tornar mais visíveis foram os limites quantitativos para o défice e para a dívida”, “não há senão que reconhecer que os custos do ajustamento se revelaram superiores ao inicialmente previsto” e “em algum sentido, pode ser isso mesmo, incapacidade do ministro das Finanças para assegurar um limite que o próprio considerou politicamente visível e relevante”;

· a inadequação da realidade: “o que não foi perceptível no princípio do Programa é que o esforço de transformação estrutural da Administração Pública necessário se revelou maior do que o inicialmente previsto”, “o padrão de ajustamento da economia portuguesa foi substancialmente diferente do previsto” e “este episódio [TSU] traduz as dificuldades políticas associadas à redução da despesa em circunstâncias de grande exigência”;

· o futuro para uso doméstico: “A minha forma de ler o que se passou nas últimas semanas é que a remodelação e reorganização orgânica do Governo, ocorridas em Julho, para além do acordo entre os partidos que o apoiam, criam as condições para que essa unidade de propósitos, mobilização de vontade política e coesão da equipa governativa se afirmem de modo a completar o ciclo do nosso ajustamento. E a gerir de forma bem-sucedida a transição para o pós-programa”;

· o futuro para uso curricular externo: “Sou um europeísta convicto. Mas não sou um federalista”, “Funcionamos [as instituições europeias e a sua estrutura dirigente] num sistema de lógica de regras. E o entendimento das regras do jogo é mais importante do que o entendimento particular com os protagonistas”, “Sendo hoje muito claro que, para além dessa disciplina orçamental ser absolutamente fundamental, são necessários arranjos institucionais que promovam estabilidade financeira e a integração financeira europeia” e “Neste momento a minha maior preocupação é a concretização de uma união financeira europeia”.

Vejamos, por fim, dois dos recados – só aparentemente menores ou laterais – que VG também fez questão de que constassem no livro, sempre procurando esconder uma substantiva agressividade com a salvaguarda de uma marcada elegância formal. Dois são, obviamente, os seus destinatários principais:

· Sócrates, o primeiro-ministro a que implicitamente atribui o grosso das culpas originárias, com destaque para os dois momentos-chave da reação à crise (“coloca-se a questão da oportunidade de uma expansão orçamental concertada na Europa, que deveria obviamente respeitar a margem de manobra orçamental de cada país”, “o Conselho Europeu usou a expressão Timely, Targeted and Temporary” e “o Governo português entendeu que a melhor resposta de Portugal era uma política orçamental agressivamente expansionista”) e do crescente isolamento e vulnerabilidade de Portugal antes do resgate (“o PEC IV teve grande relevância na política interna portuguesa – atrever-me-ia a dizer na politiquice interna portuguesa –, mas não tem nenhum impacto sobre as forças fundamentais que conduziram Portugal, no primeiro semestre de 2011, a uma situação de quase bancarrota”, “não oferecia qualquer compromisso firme e concreto de financiamento”, “não se pagam dívidas com declarações de apoio” e “a linguagem usada em público, na sequência de reuniões agora muito comentadas neste Outubro de 2013, retrata a disponibilidade das instituições europeias e também da Alemanha em apoiar Portugal, mas em nenhum documento há qualquer garantia concreta de financiamento”);

· (ii) Portas, o colega de Governo a que implicitamente atribui o grosso das culpas supervenientes, com destaque para a inconciliabilidade das diferenças entre eles (“diferenças de julgamento político e de avaliação foram tornadas públicas por ele, naturalmente na sua própria perspectiva”) e para a crise política do Verão de 2013 (“a posição do líder do CDS e a sua comunicação são ambas facilmente compreensíveis através da perspectiva da teoria económica de democracia”, “é manifestada um discordância de consciência com uma solução de mera continuidade no Ministério das Finanças”, “a saída de Paulo Portas e o impacto que teve nos mercados mostra a força e a relevância da política” e “os mercados não foram, nem num caso, nem noutro, motivados por pessoas, episódios, frases, palavras, mas pela declaração de uma crise política”).

E é o que se me apraz...

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