A sociedade portuguesa vai atingindo a sua maturidade
do ponto de vista do seu relacionamento e vivência do pré 25 de abril de 1974 e
com toda a senda da libertação criada pelo golpe militar, sabiamente antecipado
por Medeiros Ferreira em tese não muito do agrado do PCP. É bom que isso
aconteça enquanto não desaparecem os seus intérpretes, porque isso permitirá
alguma transmissão de memórias vividas, através de testemunhos vivenciais que são
cruciais para completar os registos que a história considerará como relevantes.
Tudo isto a propósito de uma hora de rádio naTSF, entre as 20 e as 21 de hoje enquanto fazia um percurso solitário de Évora
para o Porto. Hora de rádio essa que nos transmitiu uma vivência-conversa com
Maria José Morgado e a sua filha psicóloga clínica Laura Sanches, sempre com a
presença da memória tutelar de José Luís Saldanha Sanches, num triângulo
incompleto, mas vivo de recordações. Um documento notável, singelo mas muito
profundo, onde ouvi Maria José Morgado falar com uma distância notável das
diabruras políticas do casal Morgado-Sanches no pré 25 de abril com o regime em
apodrecimento progressivo. Impressionou-me sobretudo as não lamúrias da prisão
dos dois, José Luís Saldanha Sanches por duas vezes, encarando o facto como uma
consequência incontornável dos riscos da rotura que pretendiam acelerar, sem
qualquer pretensão de capitalização pessoal dos sacrifícios que isso implicou. Impressionou-me
a disciplina férrea do casal, o facto de Laura ter crescido sem a presença omnisciente
da experiência revolucionária dos pais, mais disso informada pelas avós
entusiastas da revolução do que pelo relato dos pais. Impressionou-me a frieza
do relato do corte com o marxismo-leninismo e maoismo e sobretudo a ideia de
que a partir de um certo momento decidiram ir construir vida, Saldanha Sanches numa
carreira universitária tardia, Maria José Morgado como magistrada. Impressionou-me
também o retorno do radicalismo na forma como Maria José Morgado se refere à
crise atual, à sua incomodidade quase revolta com a incapacidade, segundo o seu
testemunho, da revolução ter erradicado os sinais ancestrais de pobreza, de
desigualdade, de corrupção. E sobretudo o seu relato da morte de Saldanha Sanches,
do modo como racionalmente incorporou a inevitabilidade da morte face à doença
implacável, afinal o único obstáculo para a qual a consciência e energia
revolucionárias não encontraram saída.
Arrepiante, de qualquer modo crucial para
compreender alguma da esquerda portuguesa.
Sem comentários:
Enviar um comentário