quarta-feira, 2 de abril de 2014

MARIA JOSÉ E LAURA



A sociedade portuguesa vai atingindo a sua maturidade do ponto de vista do seu relacionamento e vivência do pré 25 de abril de 1974 e com toda a senda da libertação criada pelo golpe militar, sabiamente antecipado por Medeiros Ferreira em tese não muito do agrado do PCP. É bom que isso aconteça enquanto não desaparecem os seus intérpretes, porque isso permitirá alguma transmissão de memórias vividas, através de testemunhos vivenciais que são cruciais para completar os registos que a história considerará como relevantes.
Tudo isto a propósito de uma hora de rádio naTSF, entre as 20 e as 21 de hoje enquanto fazia um percurso solitário de Évora para o Porto. Hora de rádio essa que nos transmitiu uma vivência-conversa com Maria José Morgado e a sua filha psicóloga clínica Laura Sanches, sempre com a presença da memória tutelar de José Luís Saldanha Sanches, num triângulo incompleto, mas vivo de recordações. Um documento notável, singelo mas muito profundo, onde ouvi Maria José Morgado falar com uma distância notável das diabruras políticas do casal Morgado-Sanches no pré 25 de abril com o regime em apodrecimento progressivo. Impressionou-me sobretudo as não lamúrias da prisão dos dois, José Luís Saldanha Sanches por duas vezes, encarando o facto como uma consequência incontornável dos riscos da rotura que pretendiam acelerar, sem qualquer pretensão de capitalização pessoal dos sacrifícios que isso implicou. Impressionou-me a disciplina férrea do casal, o facto de Laura ter crescido sem a presença omnisciente da experiência revolucionária dos pais, mais disso informada pelas avós entusiastas da revolução do que pelo relato dos pais. Impressionou-me a frieza do relato do corte com o marxismo-leninismo e maoismo e sobretudo a ideia de que a partir de um certo momento decidiram ir construir vida, Saldanha Sanches numa carreira universitária tardia, Maria José Morgado como magistrada. Impressionou-me também o retorno do radicalismo na forma como Maria José Morgado se refere à crise atual, à sua incomodidade quase revolta com a incapacidade, segundo o seu testemunho, da revolução ter erradicado os sinais ancestrais de pobreza, de desigualdade, de corrupção. E sobretudo o seu relato da morte de Saldanha Sanches, do modo como racionalmente incorporou a inevitabilidade da morte face à doença implacável, afinal o único obstáculo para a qual a consciência e energia revolucionárias não encontraram saída.
Arrepiante, de qualquer modo crucial para compreender alguma da esquerda portuguesa.

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