Não sou propriamente um fiel
seguidor de efemérides e as interrogações do futuro ocuparam-me sempre mais do
que o regresso episódico ao passado. Mas a revolução de Abril para a minha
geração não é uma efeméride qualquer.
Há 40 anos, sem ligações a
qualquer força política organizada, fruto de uma educação pequeno-burguesa
defensiva e que me preservou da perigosidade de contaminações de risco, tinha já
alguma consciência política, sobretudo gerada nos últimos anos da licenciatura
em economia, na qual só me interessava a teoria e a história económica. Na
altura, a obra de Adérito Sedas Nunes sobre a sociedade dualista portuguesa, o
incontornável Capitalismo e Emigração de
António Barreto e de Carlos Castro Almeida que viria a reencontrar nos inícios
do projeto da Quaternaire, alguns textos de Francisco Pereira de Moura e toda
uma literatura que despontava sobre as chamadas economias de transição (com Charles
Bettelheim e Paul Sweezy à cabeça) tinham começado a marcar o meu perfil de
economista social que nunca abandonaria, mesmo que sujeito às intermitências do
generoso trabalho docente em que mergulharia uns anos depois.
Com esta consciência política
em formação, a revolução de Abril apanhou-me em pleno serviço militar, no
Lumiar em Lisboa, sem qualquer informação privilegiada sobre o que iria
acontecer. Um mês antes, ainda em Mafra e com o espectro de uma chamada a curso
de capitães que significava para a minha geração a participação ativa na guerra
colonial, tinha sentido no quartel de Mafra uma vaga sensação do que foi o
golpe falhado das Caldas. Recordo-me que, na noite de 24 de abril, depois de
uma ida normal à Avenida de Roma, para uma cavaqueira no hoje já desaparecido Café
Roma, o regresso ao quartel do Lumiar foi tão normal como em outras inúmeras
vezes e só em plena madrugada o oficial de dia informou os aspirantes de que
estava em curso um golpe militar para restabelecimento da democracia em
Portugal, com convite à adesão e a imediata atribuição de funções que, no meu
caso, passou por fazer parte de um grupo de vigia ao comandante detido e um dia
depois a uma ida às instalações da RTP.
O 1º de maio de 1974 foi
ainda um dia passado em pleno quartel, abrilhantado pela visita ao quartel do
Lumiar de um conjunto imenso de escritores, dos quais me recordo que Mário
Castrim e José Cardoso Pires estavam nesse grupo e uma vaga sensação de que
também Carlos Oliveira poderia ter estado.
A partir daí e durante cerca
de 27 meses de serviço militar até à célebre crise do RASP em Vila Nova de
Gaia, que coincide com a minha reentrada na vida civil, então já assistente na
Faculdade de Economia do Porto, tive oportunidade de viver e atravessar o
turbilhão ideológico dos quartéis, sobretudo entre os oficiais milicianos. Esse
turbilhão ideológico incidia então sobretudo na comparação das experiências
revolucionárias que poderiam servir de referenciais a Portugal, já que o
Movimento das Forças Armadas viveu sempre, e ainda bem, numa grande interrogação
de modelo, mesmo que se sentisse nos quartéis a maior preparação dos quadros
afetos ao Partido Comunista, sempre críticos do esquerdismo mais audacioso que
também era visível.
De todo aquele turbilhão, 40
anos depois, fica sobretudo a consagração do direito à liberdade, a concretização
dos três DDD de Medeiros Ferreira e os valores seguros da denúncia da
desigualdade e das dramáticas condições de vida a que o regime autoritário
submeteu uma fração considerável da população portuguesa, gerando uma “path dependency” da qual ainda não
conseguimos recuperar plenamente. De permeio, esse turbilhão ideológico marcou
também a transição para a estabilidade na Faculdade de Economia do Porto já nas
instalações da Asprela de autoria do arquiteto Viana de Lima. Nesse turbilhão,
também numa madrugada e já em funções no Conselho Diretivo, fui acordado pelo
Daniel Bessa e pela amiga Rute comunicando-me que a Faculdade tinha sido objeto
de um ataque bombista e que era necessário instalar-nos no local.
A convivência democrática
que hoje se vive, ilustrada por exemplo pelo beijo entre Ana Caetano e Otelo
Saraiva de Carvalho na Gulbenkian, pela possibilidade da mais imbecil e nojenta entrevista
que Vasco Pulido Valente terá dado na sua vida de eterno renegado com a sua própria
condição humana poder vir à luz do dia sem que alguém lhe parta o focinho e pelo
ambiente de diversidade que se respira no caderno do Diário de Notícias
comemorativo dos 40 anos de abril, é o que devemos ao golpe militar e aos seus
responsáveis. Se a democracia não foi ainda capaz de ir além dos atavismos
estruturais portugueses e se os valores do combate à desigualdade têm de estar
de novo na agenda da intervenção política e cívica em geral, isso significa simplesmente
que não devemos esquecer o passado mas sobretudo projetá-lo no futuro coletivo
que temos de continuar a construir, agora atentos a novos contextos e sobretudo
a um enquadramento macroglobal bem diferente do que ajudou a precipitar a Revolução.
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