sexta-feira, 25 de abril de 2014

40 ANOS



Não sou propriamente um fiel seguidor de efemérides e as interrogações do futuro ocuparam-me sempre mais do que o regresso episódico ao passado. Mas a revolução de Abril para a minha geração não é uma efeméride qualquer.
Há 40 anos, sem ligações a qualquer força política organizada, fruto de uma educação pequeno-burguesa defensiva e que me preservou da perigosidade de contaminações de risco, tinha já alguma consciência política, sobretudo gerada nos últimos anos da licenciatura em economia, na qual só me interessava a teoria e a história económica. Na altura, a obra de Adérito Sedas Nunes sobre a sociedade dualista portuguesa, o incontornável Capitalismo e Emigração de António Barreto e de Carlos Castro Almeida que viria a reencontrar nos inícios do projeto da Quaternaire, alguns textos de Francisco Pereira de Moura e toda uma literatura que despontava sobre as chamadas economias de transição (com Charles Bettelheim e Paul Sweezy à cabeça) tinham começado a marcar o meu perfil de economista social que nunca abandonaria, mesmo que sujeito às intermitências do generoso trabalho docente em que mergulharia uns anos depois.
Com esta consciência política em formação, a revolução de Abril apanhou-me em pleno serviço militar, no Lumiar em Lisboa, sem qualquer informação privilegiada sobre o que iria acontecer. Um mês antes, ainda em Mafra e com o espectro de uma chamada a curso de capitães que significava para a minha geração a participação ativa na guerra colonial, tinha sentido no quartel de Mafra uma vaga sensação do que foi o golpe falhado das Caldas. Recordo-me que, na noite de 24 de abril, depois de uma ida normal à Avenida de Roma, para uma cavaqueira no hoje já desaparecido Café Roma, o regresso ao quartel do Lumiar foi tão normal como em outras inúmeras vezes e só em plena madrugada o oficial de dia informou os aspirantes de que estava em curso um golpe militar para restabelecimento da democracia em Portugal, com convite à adesão e a imediata atribuição de funções que, no meu caso, passou por fazer parte de um grupo de vigia ao comandante detido e um dia depois a uma ida às instalações da RTP.
O 1º de maio de 1974 foi ainda um dia passado em pleno quartel, abrilhantado pela visita ao quartel do Lumiar de um conjunto imenso de escritores, dos quais me recordo que Mário Castrim e José Cardoso Pires estavam nesse grupo e uma vaga sensação de que também Carlos Oliveira poderia ter estado.
A partir daí e durante cerca de 27 meses de serviço militar até à célebre crise do RASP em Vila Nova de Gaia, que coincide com a minha reentrada na vida civil, então já assistente na Faculdade de Economia do Porto, tive oportunidade de viver e atravessar o turbilhão ideológico dos quartéis, sobretudo entre os oficiais milicianos. Esse turbilhão ideológico incidia então sobretudo na comparação das experiências revolucionárias que poderiam servir de referenciais a Portugal, já que o Movimento das Forças Armadas viveu sempre, e ainda bem, numa grande interrogação de modelo, mesmo que se sentisse nos quartéis a maior preparação dos quadros afetos ao Partido Comunista, sempre críticos do esquerdismo mais audacioso que também era visível.
De todo aquele turbilhão, 40 anos depois, fica sobretudo a consagração do direito à liberdade, a concretização dos três DDD de Medeiros Ferreira e os valores seguros da denúncia da desigualdade e das dramáticas condições de vida a que o regime autoritário submeteu uma fração considerável da população portuguesa, gerando uma “path dependency” da qual ainda não conseguimos recuperar plenamente. De permeio, esse turbilhão ideológico marcou também a transição para a estabilidade na Faculdade de Economia do Porto já nas instalações da Asprela de autoria do arquiteto Viana de Lima. Nesse turbilhão, também numa madrugada e já em funções no Conselho Diretivo, fui acordado pelo Daniel Bessa e pela amiga Rute comunicando-me que a Faculdade tinha sido objeto de um ataque bombista e que era necessário instalar-nos no local.
A convivência democrática que hoje se vive, ilustrada por exemplo pelo beijo entre Ana Caetano e Otelo Saraiva de Carvalho na Gulbenkian, pela possibilidade da mais imbecil e nojenta entrevista que Vasco Pulido Valente terá dado na sua vida de eterno renegado com a sua própria condição humana poder vir à luz do dia sem que alguém lhe parta o focinho e pelo ambiente de diversidade que se respira no caderno do Diário de Notícias comemorativo dos 40 anos de abril, é o que devemos ao golpe militar e aos seus responsáveis. Se a democracia não foi ainda capaz de ir além dos atavismos estruturais portugueses e se os valores do combate à desigualdade têm de estar de novo na agenda da intervenção política e cívica em geral, isso significa simplesmente que não devemos esquecer o passado mas sobretudo projetá-lo no futuro coletivo que temos de continuar a construir, agora atentos a novos contextos e sobretudo a um enquadramento macroglobal bem diferente do que ajudou a precipitar a Revolução.

Sem comentários:

Enviar um comentário