domingo, 25 de maio de 2014

FINANCIAL TIMES VERSUS THOMAS PIKETTY

(Thomas Piketty)
(Branko Milanovic)


Nos últimos dias, a blogosfera económica e por essa via alguma imprensa diária e especializada andam agitadas com a investigação (meritória) do jornalista do Financial Times Chris Giles aos dados do livro que muitos precoce e erradamente consideram ser o novo Capital, no fundo a obra do economista francês Thomas Piketty.
Mais especificamente, Giles concentra-se nos dados sobre a distribuição da riqueza em países como a França, o Reino Unido e a Suécia, identifica algumas falhas, de vária natureza esclareça-se e procura com isso lançar para o ar a ideia de que a concentração da riqueza que está no coração do argumento de Piketty é bastante menos acentuada, antes da 2ª guerra mundial, do que o economista francês encontra como a principal razão de bloqueio estrutural do capitalismo.
Não entrando para já no coração desse debate, muito particular porque envolve fontes históricas que não estão ao alcance de todos, muito menos dos que estão para cá da investigação sobre fontes históricas desta natureza, o artigo do Financial Times lançou no ar uma espécie de revanche. Não se trata de revanche pelo facto de Piketty, com um instrumental fundamentalmente neoclássico, ter ousado cavar incertezas e bloqueios estruturais no coração do capitalismo, saindo o FT a terreiro para defender a sua dama e o seu negócio. Não, não se trata disso. Mas ficou no ar uma tentativa de formular uma comparação entre o que se passou com a célebre folha de EXCEL de Reinhart e Rogoff e sobre a validação dos dados que apontam o limiar dos 90% da dívida pública no PIB como o cabo das tormentas dos efeitos penalizadores da dívida sobre o crescimento económico. Haveria assim uma simetria: dois documentos de sinal contrário ao mainstream económico, o de Reinhart-Rogoff abençoando (o que os autores não assumiram) a desalavancagem violenta dos níveis da dívida e o de Piketty pondo em causa a sobrevivência do capitalismo. A simetria não colhe. Primeiro, Reinhart-Rogoff sempre negaram ter influenciado o aproveitamento político que os seus dados suscitaram e até defenderam que a sua investigação histórica diz que não há praticamente casos de crises financeiras de grande envergadura (como a atual) que não tenham gerado reestruturações de dívida. Segundo, Piketty o que pretende é justificar uma política fiscal mais progressiva e mais atenta à evolução da riqueza e não apenas do rendimento, não se assumindo como o novo Marx dos tempos de hoje.
Além disso, estamos a falar de problemas com os dados (os de Reinhart-Rogoff indiscutíveis e os de Piketty ainda em discussão) que produziram muito diferentes consequências: os primeiros foram erradamente (e pelos vistos sem o consentimento dos seus autores) como fundamento da austeridade de desalavancagem da dívida; os segundos limitaram-se a animar um debate de tal maneira que estranha e paradoxalmente a obra chegou a ser a mais vendida na Amazon.
Dito isto, devo confessar que a resposta de Piketty ao artigo de Giles no FT ficou aquém do que esperaria. Piketty centrou-se no argumento de que não tem nada a esconder e que por isso publicou on line os dados, incentivando que outros analistas como Giles investiguem a coerência dos dados e que façam avançar a consistência das bases de dados históricas sobre distribuição da riqueza. Apoiou-se ainda na investigação posterior de Saez e de Zucman sobre os EUA para confirmar os trends. Esperaria uma resposta mais pormenorizada às acusações de inconsistência avançadas por Giles, que são de diferente natureza e que por isso justificariam respostas diferenciadas. Piketty não o fez. Talvez o faça em futuros rounds da discussão. Mas ficou-me um sabor a deceção.
Estranhamente, tenho encontrado na blogosfera respostas a Giles bem mais estruturadas. Destaco a de Branko Milanovic, que sempre considerei até ao aparecimento de Piketty em cena o investigador mais sólido sobre a distribuição do rendimento e da riqueza a nível mundial com vasto trabalho para o Banco Mundial de que foi um dos economistas mais representativos. Milanovic vem destacar sensatamente os inúmeros problemas metodológicos que a reconstituição dos dados sobre a riqueza tende a suscitar, sobretudo quando ela se faz no passado longínquo. Quer se utilizem métodos de capitalização (do passado para o futuro) ou de atualização (do presente para o passado), ou simplesmente se procurem parâmetros que relacionem a riqueza dos mortos com a dos vivos, é praticamente impossível contornar imperfeições ou até arbitrariedades de escolha. Isto não significa que sobretudo no que respeita ao Reino Unido, Piketty não deva uma explicação mais aprofundada para compreendermos os desvios entre as estimativas do FT e as do próprio Piketty.
Tudo isto mostra a vulnerabilidade da economia quantitativa, a cautela nas extrapolações de política económica que essa economia possa gerar e sobretudo a necessidade de um escrutínio permanente sobre as bases de cálculo.

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