(Thomas Piketty)
(Branko Milanovic)
Nos últimos dias, a blogosfera económica e por
essa via alguma imprensa diária e especializada andam agitadas com a investigação (meritória) do jornalista do Financial Times Chris Giles aos dados do livro que
muitos precoce e erradamente consideram ser o novo Capital, no fundo a obra do
economista francês Thomas Piketty.
Mais especificamente, Giles concentra-se nos
dados sobre a distribuição da riqueza em países como a França, o Reino Unido e
a Suécia, identifica algumas falhas, de vária natureza esclareça-se e procura
com isso lançar para o ar a ideia de que a concentração da riqueza que está no
coração do argumento de Piketty é bastante menos acentuada, antes da 2ª guerra
mundial, do que o economista francês encontra como a principal razão de
bloqueio estrutural do capitalismo.
Não entrando para já no coração desse debate,
muito particular porque envolve fontes históricas que não estão ao alcance de
todos, muito menos dos que estão para cá da investigação sobre fontes históricas
desta natureza, o artigo do Financial Times lançou no ar uma espécie de
revanche. Não se trata de revanche pelo facto de Piketty, com um instrumental
fundamentalmente neoclássico, ter ousado cavar incertezas e bloqueios
estruturais no coração do capitalismo, saindo o FT a terreiro para defender a
sua dama e o seu negócio. Não, não se trata disso. Mas ficou no ar uma
tentativa de formular uma comparação entre o que se passou com a célebre folha
de EXCEL de Reinhart e Rogoff e sobre a validação dos dados que apontam o
limiar dos 90% da dívida pública no PIB como o cabo das tormentas dos efeitos
penalizadores da dívida sobre o crescimento económico. Haveria assim uma
simetria: dois documentos de sinal contrário ao mainstream económico, o de Reinhart-Rogoff abençoando (o que os
autores não assumiram) a desalavancagem violenta dos níveis da dívida e o de
Piketty pondo em causa a sobrevivência do capitalismo. A simetria não colhe.
Primeiro, Reinhart-Rogoff sempre negaram ter influenciado o aproveitamento político
que os seus dados suscitaram e até defenderam que a sua investigação histórica
diz que não há praticamente casos de crises financeiras de grande envergadura
(como a atual) que não tenham gerado reestruturações de dívida. Segundo, Piketty
o que pretende é justificar uma política fiscal mais progressiva e mais atenta à
evolução da riqueza e não apenas do rendimento, não se assumindo como o novo
Marx dos tempos de hoje.
Além disso, estamos a falar de problemas com os
dados (os de Reinhart-Rogoff indiscutíveis e os de Piketty ainda em discussão)
que produziram muito diferentes consequências: os primeiros foram erradamente
(e pelos vistos sem o consentimento dos seus autores) como fundamento da
austeridade de desalavancagem da dívida; os segundos limitaram-se a animar um
debate de tal maneira que estranha e paradoxalmente a obra chegou a ser a mais
vendida na Amazon.
Dito isto, devo confessar que a resposta de
Piketty ao artigo de Giles no FT ficou aquém do que esperaria. Piketty
centrou-se no argumento de que não tem nada a esconder e que por isso publicou on line os dados, incentivando que
outros analistas como Giles investiguem a coerência dos dados e que façam
avançar a consistência das bases de dados históricas sobre distribuição da
riqueza. Apoiou-se ainda na investigação posterior de Saez e de Zucman sobre os
EUA para confirmar os trends. Esperaria uma resposta mais pormenorizada às
acusações de inconsistência avançadas por Giles, que são de diferente natureza
e que por isso justificariam respostas diferenciadas. Piketty não o fez. Talvez
o faça em futuros rounds da discussão. Mas ficou-me um sabor a deceção.
Estranhamente, tenho encontrado na blogosfera
respostas a Giles bem mais estruturadas. Destaco a de Branko Milanovic, que
sempre considerei até ao aparecimento de Piketty em cena o investigador mais sólido
sobre a distribuição do rendimento e da riqueza a nível mundial com vasto
trabalho para o Banco Mundial de que foi um dos economistas mais
representativos. Milanovic vem destacar sensatamente os inúmeros problemas
metodológicos que a reconstituição dos dados sobre a riqueza tende a suscitar,
sobretudo quando ela se faz no passado longínquo. Quer se utilizem métodos de
capitalização (do passado para o futuro) ou de atualização (do presente para o
passado), ou simplesmente se procurem parâmetros que relacionem a riqueza dos
mortos com a dos vivos, é praticamente impossível contornar imperfeições ou até
arbitrariedades de escolha. Isto não significa que sobretudo no que respeita ao
Reino Unido, Piketty não deva uma explicação mais aprofundada para
compreendermos os desvios entre as estimativas do FT e as do próprio Piketty.
Tudo isto mostra a vulnerabilidade da economia
quantitativa, a cautela nas extrapolações de política económica que essa
economia possa gerar e sobretudo a necessidade de um escrutínio permanente
sobre as bases de cálculo.
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