domingo, 11 de maio de 2014

ANABELA, EDUARDO E JOSÉ -AUGUSTO



Um domingo excecionalmente madrugador por questões de logística familiar fez-me mergulhar bem cedo na leitura dos jornais e sobretudo no suplemento 2 do Público. Já perceberam que sou um admirador confesso das entrevistas de Anabela Mota Ribeiro (AMR) e sempre que elas se encontram comigo dou por bem aproveitado o tempo, quase sempre de reencontro com este fado de ser português, aumento de autoestima, uns minutos de felicidade, mesmo.
A entrevista de hoje é uma autêntica preciosidade para compreender o antes e o depois da democracia em Portugal, os diferentes cambiantes do país e sobretudo a relevância de se ter estado fora, de se ter sentido por contraponto o cosmopolitismo e a liberdade.
A entrevista reúne sugestivamente dois vultos enormes da cultura portuguesa, que a proteção divina ou simplesmente a química das coisas e dos corpos nos têm preservado, ambos com 90 anos de vida e uma lucidez de espírito que a acumulação do tempo e do saber não podem deixar de refinar. Esses vultos são Eduardo Lourenço (EL) e José-Augusto França (JAF), a quem devo diferentes iniciações. A EL devo sobretudo a capacidade de pensar o destino português e sobretudo a desproporção entre a dimensão territorial e a ambição de querer assumir um papel no mundo. O Labirinto da Saudade é seguramente uma das obras que conservaria acaso fosse obrigado a dotar-me apenas de algumas referências. Só muito mais tarde compreendi a importância que o livrinho (na expressão de EL) Heterodoxias teve na transição para os anos 50 e na própria apresentação de EL à intelectualidade lisboeta. A JAF devo sobretudo alguma (pequena) iniciação ao mundo da arte, sobretudo em artigos dispersos que uma memória com falhas já não consegue reproduzir.
AMR consegue o espanto de transformar uma entrevista numa conversa coloquial de velhos amigos de 90 anos, ambos com mulheres estrangeiras, francesas. Uma conversa com pormenores de contexto societal preciosos para compreender a transição democrática em Portugal por contraponto à memória dos tempos do antigo regime. A diferente origem e estatuto social das duas famílias, a relação Lisboa (JAF)- Coimbra (EL), a dialética Pessoa (EL) – Almada Negreiros (JAF) e sobretudo o enorme impacto das duas diásporas: em França a de JAF para doutoramento na Sorbonne e na Alemanha e depois em França a de EL como leitor em universidades europeias. Pormenores como este, na dialética cosmopolitismo-provincianismo, na palavra de EL: “(…) para mim vir para aqui já era ir a Nova Iorque. Não se respirava no país, mas eu respirava quando vinha a Lisboa. A primeira coisa que fazia era sair no Rossio e dirigir-me ao Tejo para respirar o mar. Aquilo era o mar.” Com as devidas distâncias, Lisboa é também para mim não o mar mas a luz e, muitos anos já lá vão, mas ainda recordo percursos matutinos a pé entre Santa Apolónia e o Terreiro do Paço, quando chegava no comboio da meia-noite pela alvorada das sete da manhã e me sentia seduzido por aquela luz inconfundível.
Mas também pormenores deliciosos de contextualização de costumes, as pastelarias e a sua não frequência por parte das mulheres, as historietas com os inspetores da PIDE a educação de um menino da província e da capital, as questões do corpo e do sexo. Em relação a esta última dimensão que considero ser um aspeto muito pouco estudado na sociologia da liberdade em Portugal, EL tem algumas referências de rara perspicácia: “Quem vinha da província sentia automaticamente … O meu pai era muito sensível à atmosfera (não era termo dele) erotizante da capital. Falava da maneira como andavam as lisboetas. Distinta da maneira como se andava na província. (…) Usava palavras com uma conotação sexual. Falava da liberdade de gestos, de comportamento, que destoava da província. Eu sentia isto na fronteira com Espanha. Quando íamos comprar coisas do outro lado, antes da Guerra Civil (tinha dez anos), ficávamos pasmados com o comportamento diferente daquelas duas regiões, ao lado uma da outra, que se visitavam. As espanholas: algumas deviam ser estudantes em Salamanca. Tinham uma desenvoltura, uma lata! As nossas eram embiocadas. Podia ser dos novos tempos, do salazarismo. Mas penso que não, que era uma coisa atávica.”
Enfim, uma preciosidade.

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