Um domingo excecionalmente madrugador por questões
de logística familiar fez-me mergulhar bem cedo na leitura dos jornais e
sobretudo no suplemento 2 do Público. Já perceberam que sou um admirador
confesso das entrevistas de Anabela Mota Ribeiro (AMR) e sempre que elas se
encontram comigo dou por bem aproveitado o tempo, quase sempre de reencontro
com este fado de ser português, aumento de autoestima, uns minutos de
felicidade, mesmo.
A entrevista de hoje é uma autêntica preciosidade
para compreender o antes e o depois da democracia em Portugal, os diferentes
cambiantes do país e sobretudo a relevância de se ter estado fora, de se ter
sentido por contraponto o cosmopolitismo e a liberdade.
A entrevista reúne sugestivamente dois vultos
enormes da cultura portuguesa, que a proteção divina ou simplesmente a química
das coisas e dos corpos nos têm preservado, ambos com 90 anos de vida e uma
lucidez de espírito que a acumulação do tempo e do saber não podem deixar de
refinar. Esses vultos são Eduardo Lourenço (EL) e José-Augusto França (JAF), a
quem devo diferentes iniciações. A EL devo sobretudo a capacidade de pensar o
destino português e sobretudo a desproporção entre a dimensão territorial e a
ambição de querer assumir um papel no mundo. O Labirinto
da Saudade é seguramente uma das obras que conservaria acaso
fosse obrigado a dotar-me apenas de algumas referências. Só muito mais tarde
compreendi a importância que o livrinho (na expressão de EL) Heterodoxias teve na transição para os
anos 50 e na própria apresentação de EL à intelectualidade lisboeta. A JAF devo
sobretudo alguma (pequena) iniciação ao mundo da arte, sobretudo em artigos
dispersos que uma memória com falhas já não consegue reproduzir.
AMR consegue o espanto de transformar uma
entrevista numa conversa coloquial de velhos amigos de 90 anos, ambos com mulheres
estrangeiras, francesas. Uma conversa com pormenores de contexto societal
preciosos para compreender a transição democrática em Portugal por contraponto à
memória dos tempos do antigo regime. A diferente origem e estatuto social das
duas famílias, a relação Lisboa (JAF)- Coimbra (EL), a dialética Pessoa (EL) –
Almada Negreiros (JAF) e sobretudo o enorme impacto das duas diásporas: em
França a de JAF para doutoramento na Sorbonne e na Alemanha e depois em França
a de EL como leitor em universidades europeias. Pormenores como este, na dialética
cosmopolitismo-provincianismo, na palavra de EL: “(…) para
mim vir para aqui já era ir a Nova Iorque. Não se respirava no país, mas eu respirava
quando vinha a Lisboa. A primeira coisa que fazia era sair no Rossio e
dirigir-me ao Tejo para respirar o mar. Aquilo era o mar.” Com
as devidas distâncias, Lisboa é também para mim não o mar mas a luz e, muitos
anos já lá vão, mas ainda recordo percursos matutinos a pé entre Santa Apolónia
e o Terreiro do Paço, quando chegava no comboio da meia-noite pela alvorada das
sete da manhã e me sentia seduzido por aquela luz inconfundível.
Mas também pormenores deliciosos de
contextualização de costumes, as pastelarias e a sua não frequência por parte das
mulheres, as historietas com os inspetores da PIDE a educação de um menino da
província e da capital, as questões do corpo e do sexo. Em relação a esta última
dimensão que considero ser um aspeto muito pouco estudado na sociologia da
liberdade em Portugal, EL tem algumas referências de rara perspicácia: “Quem vinha da província sentia automaticamente … O meu
pai era muito sensível à atmosfera (não era termo dele) erotizante da capital. Falava
da maneira como andavam as lisboetas. Distinta da maneira como se andava na
província. (…) Usava palavras com uma conotação sexual. Falava da liberdade de
gestos, de comportamento, que destoava da província. Eu sentia isto na
fronteira com Espanha. Quando íamos comprar coisas do outro lado, antes da
Guerra Civil (tinha dez anos), ficávamos pasmados com o comportamento diferente
daquelas duas regiões, ao lado uma da outra, que se visitavam. As espanholas:
algumas deviam ser estudantes em Salamanca. Tinham uma desenvoltura, uma lata! As
nossas eram embiocadas. Podia ser dos novos tempos, do salazarismo. Mas penso
que não, que era uma coisa atávica.”
Enfim, uma preciosidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário