Já aqui repetidas vezes assinalei o facto da
evolução política e económica no Reino Unido poder ser considerada uma espécie
de espelho antecipado do que vai passando pela cabeça da maioria e dos seus
principais representantes. Podem dizer-me que se trata de uma visão comparativa
algo conspirativa, pois nem a economia britânica é a portuguesa com as suas
debilidades estruturais conhecidas, nem as condições em que a política
macroeconómica e monetária é conduzida no Reino Unido tem comparação com a
inexistência de soberania monetária e de outros poderes em Portugal. As diferenças
de contexto e de dimensão anulariam a metáfora do espelho antecipado.
Mas insisto no argumento. Em primeiro lugar, o
Reino Unido constitui em meu entender o melhor exemplo nacional de ilustração da
loucura austeritária em tempos de taxas de juro praticamente nulas e ausência
de perspetivas inflacionárias e da febre de redução do peso e do papel do
Estado a todo o preço, ainda que suportando (ou melhor, fazendo com que outros
os suportem) o custo da degradação irreversível da qualidade dos serviços públicos
e, consequentemente, das condições de vida das populações que mais dependem
desses serviços e que não têm recursos para encontrar alternativas de acesso ao
bem estar. Em segundo lugar, há óbvias similaridades de pensamento entre os
dois governos. Será talvez difícil encontrar no espectro político britânico
figuras como Marco António Costa, mas os pequenos affaires de despesas ilegais de alguns deputados ingleses já há
muito tempo me convenceram que por detrás daquela pose fleumaticamente britânica
há muita coisa de podre e ameaçado. Depois, Paulo Portas e seus seguidores
sempre olharam o conservadorismo inglês como uma espécie dos políticos que
gostariam de ser quando fossem grandes.
Nos últimos tempos, o comportamento dinâmico da
economia britânica e o discurso político que sobretudo os conservadores e o
ministro Osborne têm construído em torno da taxa de crescimento económico anualizada
que resulta do primeiro trimestre de 2014 vêm claramente ao encontro das referências
que a atual maioria busca desesperadamente encontrar. Vejamos. A realidade do
ciclo económico é intrínseca às economias de mercado. A variedade que é possível
encontrar nessa realidade intrínseca é a da desigual intensidade histórica de
recessões e recuperações e expansões seguintes, sabendo-se ainda que estão
relacionadas na unidade indissociável do ciclo económico. A natureza e
intensidade da recessão tende regra geral a influenciar as características das
expansões seguintes.
Ora, o que os conservadores e liberais (não no
sentido americano) fizeram foi adicionar estupidamente austeridade e contração
fiscal aguda numa pós-crise 2007-2008 já de si suficientemente penosa e
atribulada. Com a contração aguda da economia britânica a gerar enormes pressões
sobre o governo conservador e liberal, a política fiscal foi sendo suavizada e
a política monetária enveredou por ajudas à banca para estímulo ao consumo e até
à compra de propriedades (este último instrumento diz bem do teor das
prioridades de tal governo e tem em Portugal um pequeno arremedo nos Vistos
Gold e no estímulo à habitação de luxo). Não é preciso ter frequentado Oxford
ou Cambridge para compreender que, quando após uma contração forçada, idiota e
desnecessária da economia, se alivia a pressão fiscal isso não pode deixar de
estimular crescimento na economia. Quando em cima de tal truque, existem riscos
de uma nova bolha imobiliária especializada e focada nos altos rendimentos, o que
parece milagre da consolidação fiscal dissipa-se em razões perfeitamente lógicas.
Lawrence Summers e Simon Wren-Lewis têm-se
destacado na desmontagem deste truque. Summers já o fez olhos nos olhos com
Osborne e tem voltado sistematicamente à carga para denunciar o que considera
ser um erro monumental de política económica numa economia que deveria constituir
uma alavanca de crescimento da economia mundial. Os seus dois últimos artigos
no Washington Post e no Financial Times são libelos acusatórios de grande expressão, sobretudo
pela difusão planetária que apresentam. Simon Wren-Lewis tem optado por uma metáfora
deliciosa. De acordo com o pensamento conservador, tudo se passaria como se
todos ambicionássemos ter gripes profundas para ter depois o prazer de nos sentirmos
melhores e aliviados. Ora como todos sabemos há gripes com sérias complicações
e há populações extremamente vulneráveis aos seus efeitos. Por isso, em vez de
uma política austeritária suicida, é sempre preferível uma solução de prevenção
de riscos, a vacina da gripe, na nossa metáfora uma consolidação fiscal menos
aguda e agressiva.
Toda esta história nos ajuda a compreender o
atamancado aproveitamento da recuperação económica e da saída limpa que o
governo está empenhado em disseminar para cidadãos incautos, desprevenidos e
angustiados com os períodos finais do mês e simulações de impostos. Alguns até
lhe acrescentam uma pitada de salvação das almas pecadoras. Os sacrifícios terão
valido a pena, purificaram as tentações do consumo e no confessionário político
podem sempre acenar com essas privações para salvação futura das suas almas de
consumidores inveterados.
Os rituais partidários constituem ambientes
fabulosos para fazer passar essas catarses de branqueamento da história. Ontem,
na festa comemorativa dos 40 anos do PSD na Alfândega, cujo papel na história
da democracia portuguesa não é por mim ignorado, nem escamoteado, foi patético
ouvir os mais acérrimos detratores de Passos Coelho e dos rumos atuais do
partido reafirmar que a matriz social-democrata continua viva. Parece que nada
aconteceu na sociedade portuguesa. Parece que não há efeitos perversos dinâmicos.
Confesso que tenho uma dificuldade eterna em compreender estes rituais e nem
sequer a comunidade dos lampiões em festa consegue superar esta minha alergia e
receio da irracionalidade das massas.
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