quarta-feira, 7 de maio de 2014

SIMON E LAWRENCE, NÃO OS POUPEM!



Já aqui repetidas vezes assinalei o facto da evolução política e económica no Reino Unido poder ser considerada uma espécie de espelho antecipado do que vai passando pela cabeça da maioria e dos seus principais representantes. Podem dizer-me que se trata de uma visão comparativa algo conspirativa, pois nem a economia britânica é a portuguesa com as suas debilidades estruturais conhecidas, nem as condições em que a política macroeconómica e monetária é conduzida no Reino Unido tem comparação com a inexistência de soberania monetária e de outros poderes em Portugal. As diferenças de contexto e de dimensão anulariam a metáfora do espelho antecipado.
Mas insisto no argumento. Em primeiro lugar, o Reino Unido constitui em meu entender o melhor exemplo nacional de ilustração da loucura austeritária em tempos de taxas de juro praticamente nulas e ausência de perspetivas inflacionárias e da febre de redução do peso e do papel do Estado a todo o preço, ainda que suportando (ou melhor, fazendo com que outros os suportem) o custo da degradação irreversível da qualidade dos serviços públicos e, consequentemente, das condições de vida das populações que mais dependem desses serviços e que não têm recursos para encontrar alternativas de acesso ao bem estar. Em segundo lugar, há óbvias similaridades de pensamento entre os dois governos. Será talvez difícil encontrar no espectro político britânico figuras como Marco António Costa, mas os pequenos affaires de despesas ilegais de alguns deputados ingleses já há muito tempo me convenceram que por detrás daquela pose fleumaticamente britânica há muita coisa de podre e ameaçado. Depois, Paulo Portas e seus seguidores sempre olharam o conservadorismo inglês como uma espécie dos políticos que gostariam de ser quando fossem grandes.
Nos últimos tempos, o comportamento dinâmico da economia britânica e o discurso político que sobretudo os conservadores e o ministro Osborne têm construído em torno da taxa de crescimento económico anualizada que resulta do primeiro trimestre de 2014 vêm claramente ao encontro das referências que a atual maioria busca desesperadamente encontrar. Vejamos. A realidade do ciclo económico é intrínseca às economias de mercado. A variedade que é possível encontrar nessa realidade intrínseca é a da desigual intensidade histórica de recessões e recuperações e expansões seguintes, sabendo-se ainda que estão relacionadas na unidade indissociável do ciclo económico. A natureza e intensidade da recessão tende regra geral a influenciar as características das expansões seguintes.
Ora, o que os conservadores e liberais (não no sentido americano) fizeram foi adicionar estupidamente austeridade e contração fiscal aguda numa pós-crise 2007-2008 já de si suficientemente penosa e atribulada. Com a contração aguda da economia britânica a gerar enormes pressões sobre o governo conservador e liberal, a política fiscal foi sendo suavizada e a política monetária enveredou por ajudas à banca para estímulo ao consumo e até à compra de propriedades (este último instrumento diz bem do teor das prioridades de tal governo e tem em Portugal um pequeno arremedo nos Vistos Gold e no estímulo à habitação de luxo). Não é preciso ter frequentado Oxford ou Cambridge para compreender que, quando após uma contração forçada, idiota e desnecessária da economia, se alivia a pressão fiscal isso não pode deixar de estimular crescimento na economia. Quando em cima de tal truque, existem riscos de uma nova bolha imobiliária especializada e focada nos altos rendimentos, o que parece milagre da consolidação fiscal dissipa-se em razões perfeitamente lógicas.
Lawrence Summers e Simon Wren-Lewis têm-se destacado na desmontagem deste truque. Summers já o fez olhos nos olhos com Osborne e tem voltado sistematicamente à carga para denunciar o que considera ser um erro monumental de política económica numa economia que deveria constituir uma alavanca de crescimento da economia mundial. Os seus dois últimos artigos no Washington Post e no Financial Times são libelos acusatórios de grande expressão, sobretudo pela difusão planetária que apresentam. Simon Wren-Lewis tem optado por uma metáfora deliciosa. De acordo com o pensamento conservador, tudo se passaria como se todos ambicionássemos ter gripes profundas para ter depois o prazer de nos sentirmos melhores e aliviados. Ora como todos sabemos há gripes com sérias complicações e há populações extremamente vulneráveis aos seus efeitos. Por isso, em vez de uma política austeritária suicida, é sempre preferível uma solução de prevenção de riscos, a vacina da gripe, na nossa metáfora uma consolidação fiscal menos aguda e agressiva.
Toda esta história nos ajuda a compreender o atamancado aproveitamento da recuperação económica e da saída limpa que o governo está empenhado em disseminar para cidadãos incautos, desprevenidos e angustiados com os períodos finais do mês e simulações de impostos. Alguns até lhe acrescentam uma pitada de salvação das almas pecadoras. Os sacrifícios terão valido a pena, purificaram as tentações do consumo e no confessionário político podem sempre acenar com essas privações para salvação futura das suas almas de consumidores inveterados.
Os rituais partidários constituem ambientes fabulosos para fazer passar essas catarses de branqueamento da história. Ontem, na festa comemorativa dos 40 anos do PSD na Alfândega, cujo papel na história da democracia portuguesa não é por mim ignorado, nem escamoteado, foi patético ouvir os mais acérrimos detratores de Passos Coelho e dos rumos atuais do partido reafirmar que a matriz social-democrata continua viva. Parece que nada aconteceu na sociedade portuguesa. Parece que não há efeitos perversos dinâmicos. Confesso que tenho uma dificuldade eterna em compreender estes rituais e nem sequer a comunidade dos lampiões em festa consegue superar esta minha alergia e receio da irracionalidade das massas.

Sem comentários:

Enviar um comentário