De toda esta tropa que está no topo das instituições
europeias só Draghi vale a pena acompanhar o que vai dizendo pelos diferentes
espaços em que é chamado a intervir. Tudo o resto é ruído e há que preservar a
audição e não queimar pestanas ou gastar memória digital com gente tão
desinteressante.
O discurso de Mario Draghi em Sintra merece
leitura atenta, sobretudo porque é proferido num contexto de forte ebulição de
orientações de política monetária no mundo, já que os tempos da estabilidade
monetária em torno de uma meta de 2% para a inflação são hoje uma miragem. Os
bancos centrais estão sob escrutínio académico e público e muitos economistas,
alguns deles de forma inesperada dada a sua filiação de pensamento, começam a
pensar “fora da caixa”, isto é, a rebelarem-se contra a ortodoxia.
O discurso de Draghi é uma tomada de posição cautelosa
sobre os riscos da deflação e, em meu entender, nunca terá ido tão longe no
modo como equacionou esses riscos, embora sem pisar a linha vermelha dos que
insurgem contra a incapacidade europeia de tomar decisões mais determinadas.
Draghi começa por realizar um exercício anatómico
da deflação, destacando o peso da descida do preço das commodities (sobretudo do preço do petróleo) na tendência instalada
de descida de preços, tentando com isso encontrar forças exógenas ao euro para
explicar os riscos deflacionários, mas não deixa de referir dois fatores específicos
da zona euro.
O primeiro atinge por igual todas as economias da
zona euro. A apreciação do euro face ao dólar pressiona descendentemente os
preços, mas Draghi encontra nesse facto uma pouco consistente pressão inflacionária
futura. A descida de preços compensa a queda do rendimento disponível dos últimos
anos e pode relançar a procura interna. Mas a apreciação do euro por via dos
problemas de competitividade que gera tende a compensar essa melhoria do
rendimento disponível, penalizando a possibilidade de reequilíbrios automáticos
e dissipadores dos riscos deflacionários.
O segundo fator é específico das economias sob
ajustamento orçamental penoso. A receita da Troika apontou para a desvalorização
interna dessas economias (induzida sobretudo pela descida do preço relativo dos
serviços) e Draghi não consegue convincentemente afastar a consequência dessa
desvalorização interna em termos deflacionários. Para que esta desvalorização
interna não causasse deflação na zona euro seria necessário que os restantes países
tivessem comportamentos altistas de preços para contrariar os riscos deflacionários.
Com este diagnóstico, Draghi hesita em acreditar
que a deflação produzirá efeitos que contrabalançarão os riscos de
autoperpetuação do fenómeno ou se, pelo contrário, terá de ponderar os riscos
das expectativas dos agentes económicos internalizarem rapidamente os riscos
deflacionários e adiarem compras e investimentos, ameaçados pelo aumento do
peso real da dívida.
Nesta ponderação, Draghi é pelo menos honesto ao
destacar os bloqueios e impedimentos a que a política monetária possa estar
sujeita para produzir impactos nos preços. E esses impedimentos estão sobretudo
situados na questão do crédito às PME que não tem reagido na proporção dos estímulos
da política monetária. O discurso lança para a discussão um número
significativo: a percentagem de PME viáveis que encontra restrições no acesso
ao crédito é em Espanha e Portugal, respetivamente de 25% e 33%, com igual
percentagem a rondar 1% na Áustria e na Alemanha. Por isso, o desvio de crédito
explica cerca de 1/3 da subutilização da capacidade nos países como Espanha ou
Portugal. Mas a própria procura de crédito tarda em acompanhar a recuperação, o
que complica o que já é complicado.
Evidenciando pela primeira vez em público estar
ciente dos riscos de autoperpetuação das tendências deflacionárias, Draghi terá
ouvido hoje de viva voz Krugman defender uma outra meta de inflação para o BCE,
mais propriamente uma meta de 4%, para acomodar os diferentes ajustamentos de
preços que terão de ser realizados no norte e no sul.
Quer isto significar que a política monetária está
ao rubro. Como veremos em post dos próximos
dias, a rebeldia contra a ortodoxia vai ao ponto de alguns economistas
questionarem se a tradicional subida ou descida de taxas de referência produzirá
os efeitos esperados (tornar a atividade económica mais restritiva ou estimulá-la),
mas essa frente é bem mais complexa e exige outro fôlego para a apresentar em
termos mais acessíveis.
Modernices diria o outro, neste caso é de “monetarices” que se trata. O tempo está
fascinante para ensinar macroeconomia. Espero que os colegas no ativo não
percam esta oportunidade.
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