quarta-feira, 28 de maio de 2014

MONETARICES



De toda esta tropa que está no topo das instituições europeias só Draghi vale a pena acompanhar o que vai dizendo pelos diferentes espaços em que é chamado a intervir. Tudo o resto é ruído e há que preservar a audição e não queimar pestanas ou gastar memória digital com gente tão desinteressante.
O discurso de Mario Draghi em Sintra merece leitura atenta, sobretudo porque é proferido num contexto de forte ebulição de orientações de política monetária no mundo, já que os tempos da estabilidade monetária em torno de uma meta de 2% para a inflação são hoje uma miragem. Os bancos centrais estão sob escrutínio académico e público e muitos economistas, alguns deles de forma inesperada dada a sua filiação de pensamento, começam a pensar “fora da caixa”, isto é, a rebelarem-se contra a ortodoxia.
O discurso de Draghi é uma tomada de posição cautelosa sobre os riscos da deflação e, em meu entender, nunca terá ido tão longe no modo como equacionou esses riscos, embora sem pisar a linha vermelha dos que insurgem contra a incapacidade europeia de tomar decisões mais determinadas.
Draghi começa por realizar um exercício anatómico da deflação, destacando o peso da descida do preço das commodities (sobretudo do preço do petróleo) na tendência instalada de descida de preços, tentando com isso encontrar forças exógenas ao euro para explicar os riscos deflacionários, mas não deixa de referir dois fatores específicos da zona euro.
O primeiro atinge por igual todas as economias da zona euro. A apreciação do euro face ao dólar pressiona descendentemente os preços, mas Draghi encontra nesse facto uma pouco consistente pressão inflacionária futura. A descida de preços compensa a queda do rendimento disponível dos últimos anos e pode relançar a procura interna. Mas a apreciação do euro por via dos problemas de competitividade que gera tende a compensar essa melhoria do rendimento disponível, penalizando a possibilidade de reequilíbrios automáticos e dissipadores dos riscos deflacionários.
O segundo fator é específico das economias sob ajustamento orçamental penoso. A receita da Troika apontou para a desvalorização interna dessas economias (induzida sobretudo pela descida do preço relativo dos serviços) e Draghi não consegue convincentemente afastar a consequência dessa desvalorização interna em termos deflacionários. Para que esta desvalorização interna não causasse deflação na zona euro seria necessário que os restantes países tivessem comportamentos altistas de preços para contrariar os riscos deflacionários.
Com este diagnóstico, Draghi hesita em acreditar que a deflação produzirá efeitos que contrabalançarão os riscos de autoperpetuação do fenómeno ou se, pelo contrário, terá de ponderar os riscos das expectativas dos agentes económicos internalizarem rapidamente os riscos deflacionários e adiarem compras e investimentos, ameaçados pelo aumento do peso real da dívida.
Nesta ponderação, Draghi é pelo menos honesto ao destacar os bloqueios e impedimentos a que a política monetária possa estar sujeita para produzir impactos nos preços. E esses impedimentos estão sobretudo situados na questão do crédito às PME que não tem reagido na proporção dos estímulos da política monetária. O discurso lança para a discussão um número significativo: a percentagem de PME viáveis que encontra restrições no acesso ao crédito é em Espanha e Portugal, respetivamente de 25% e 33%, com igual percentagem a rondar 1% na Áustria e na Alemanha. Por isso, o desvio de crédito explica cerca de 1/3 da subutilização da capacidade nos países como Espanha ou Portugal. Mas a própria procura de crédito tarda em acompanhar a recuperação, o que complica o que já é complicado.
Evidenciando pela primeira vez em público estar ciente dos riscos de autoperpetuação das tendências deflacionárias, Draghi terá ouvido hoje de viva voz Krugman defender uma outra meta de inflação para o BCE, mais propriamente uma meta de 4%, para acomodar os diferentes ajustamentos de preços que terão de ser realizados no norte e no sul.
Quer isto significar que a política monetária está ao rubro. Como veremos em post dos próximos dias, a rebeldia contra a ortodoxia vai ao ponto de alguns economistas questionarem se a tradicional subida ou descida de taxas de referência produzirá os efeitos esperados (tornar a atividade económica mais restritiva ou estimulá-la), mas essa frente é bem mais complexa e exige outro fôlego para a apresentar em termos mais acessíveis.
Modernices diria o outro, neste caso é de “monetarices” que se trata. O tempo está fascinante para ensinar macroeconomia. Espero que os colegas no ativo não percam esta oportunidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário