(Na modorra
de uma tarde primaveril de Outono)
Na modorra de uma tarde primaveril de Outono, pelas
bandas de Nelas e no meio dos vinhedos do Dão, tempo para algumas reflexões em
torno do labirinto da formação de um governo com apoio parlamentar da maioria
de esquerda formada no Parlamento.
Já aqui elaborei sobre as diferenças de um acordo de governação
não poder ser entendido como uma acordo, síntese, ou osmose entre programas de
forças políticas. Por isso não partilho o catastrofismo obcecado dos que teimam
em prognosticar que o PS ficará refém do bloco PCD e Bloco de Esquerda. Ninguém
ignora as dificuldades de transformar os acordos entre o PS e as restantes
forças de esquerda com representação parlamentar num programa coerente de governação,
com um mínimo de estabilidade no tempo, não necessariamente para toda uma
legislatura. Mas para mim as dificuldades são de outra natureza. Trata-se de transformar
os referidos acordos num programa de governo não num contexto qualquer. A relevância
do contexto é dada pelos constrangimentos em que o programa de governo vai ter
de navegar, inserindo nesses constrangimentos essencialmente de natureza
orçamental as apostas de combate à austeridade e ao empobrecimento em torno das
quais é construído o consenso mínimo. O efeito surpresa em Bruxelas pode ser um
capital de esperança, sobretudo se o primeiro orçamento conseguir ser encaixado
nas baias dos apertados critérios europeus, apertados para uns e flexíveis para
outros, já se conhece a prática da casa.
Seria crucial demonstrar que a consolidação orçamental é
possível sem os tiques e extremos da governação anterior. Mas não é líquido que
isso seja possível. Tenho para mim que para que tal seja possível vai ser
necessária uma grande flexibilidade e criatividade de escolhas públicas que
pode não estar ainda disponível nesta aprendizagem das forças de esquerda. A
esquerda que passa muito tempo fora das preocupações da governação tende a não
ser pródiga em elasticidade de rins para as escolhas públicas mais adequadas sem
entregar a alma ao diabo. Tenho para mim que o dia-a-dia da governação e da concertação
parlamentar que a vai tornar possível vai estar cheia dessas necessidades de flexibilidade.
Entretanto, algum meio empresarial começa a mostrar as suas
garras. E não será de menosprezar que as alianças com a anterior governação, as
que por exemplo estiveram bem presentes no diferimento para depois das eleições
de alguns anúncios de despedimento, mostrem cada vez essas garras e joguem na degradação
da situação económica global.
Sabemos que a bondade da estratégia do programa do PS, agora
combinada com os resultados da negociação a quatro, é fortemente dependente da
recuperação económica. Mas penso que os responsáveis empresariais estão a exagerar
o peso da estabilidade e indeterminação internas na viabilização das suas decisões
de investimento. Senão vejamos. Para o universo empresarial que opera no
universo dos transacionáveis, penso que os empresários portugueses deveriam
estar mais preocupados com os riscos da deflação europeia e de estagnação
secular nas economias avançadas, já que o governo de esquerda não vai agravar
os problemas estruturais do euro em matéria de competitividade. Por sua vez,
para o universo empresarial orientado para o mercado interno, o programa de
esquerda vai estar pejado de estímulos ao rendimento, que esse mercado pode
captar.
Mas a resposta da atividade económica ao início da
governação de um programa de esquerda vai marcar indelevelmente o êxito futuro dessa
programação, sobretudo pelo clima de distensão ou de constrangimento que vai
instalar-se.
E aqui o PS vai ser penalizado por não ter iniciado mais
cedo, melhor não ter mesmo iniciado, o debate sobre qual é o lugar que a empresa
e a sua governação deverão assumir na renovação da social-democracia e do socialismo
democrático. E nesta aproximação – negociação com o PCP e o Bloco de Esquerda,
forças ainda menos propensas a abrir e a reconhecer-se nesse debate, certamente
que as condições adequadas para o fazer escassearão. E em meu entender a matéria
da empresa é crucial para que os programas social-democratas tenham mais a
dizer sobre o tema da competitividade. Nesse debate há matérias cruciais como a
da boa governação das empresas (John Kay) e da posição dos CEO em relação aos stakeholders das empresas, em que os trabalhadores
devem ser considerados. Grande parte das forças da desigualdade nas economias
de hoje passam por esta matéria, vejam-se por exemplo os trabalhos relevantes
de William Lazonick que tem estudado comportamentos de corporate governance baseados em decisões de CEO em seu próprio
proveito. A política de remunerações de quadros e trabalhadores é outra das matérias
que deve inscrever-se nesse debate. O mesmo se diga em relação ao papel da
empresa na criação de melhores condições de compatibilização do papel
profissional da mulher e da proteção social da fertilidade. E também em relação
aos mecanismos de representação dos trabalhadores nos modelos de gestão das empresas.
Este é assunto sobre o qual o meu colega Guilherme Costa me chamou a atenção há
já algum tempo e que merece da minha parte e deste blogue atenção futura.
Matérias não faltam para o debate necessário a que uma
governação de esquerda tenha a mais dizer sobre a competitividade do que estimular
o consumo através de uma política de rendimentos. É que estimular o consumo
pode não projetar consequências positivas sobre a produção nacional ou limitar-se
a estimular empresas sem grandes margens de progressão da produtividade.
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