(Ainda e
sempre a nossa controversa relação com as infraestruturas)
A recorrente entrada em cena de inundações devastadoras
como as observadas no passado fim-de-semana no Algarve, e mais particularmente
em Albufeira, começa precisamente por nos impressionar tamanha é essa
recorrência. Imagens similares têm sido coligidas ao longo do tempo do norte a
sul do país, incluindo a própria capital. Não se trata, portanto, de fenómeno
novo e territorialmente circunscrito.
Estas ocorrências têm, porém, significados distintos e
vale a pena refletir um pouco sobre essas diferenças.
Há casos evidentes em que a força desproporcionada dos
elementos naturais (chuva e vento particularmente) provoca danos avultados
sobretudo porque choca com o anquilosamento e não adaptação de infraestruturas
existentes, projetadas para cargas humanas e naturais incapazes de acomodar a
ocupação humana entretanto atingida e degradadas ao ponto de romperem com a
referida desproporção dos elementos naturais em rebelião. Neste caso, os erros
de planeamento e a incúria do não acautelamento da renovação e conservação de
infraestruturas são os principais responsáveis. A margem de manobra para a sua
superação já não é total, já que os erros de ordenamento são frequentemente
irreversíveis, pois não é fácil reverter movimentos de população em democracia.
Há condições para superação parcial, sobretudo se a renovação e conservação de
infraestruturas entrar decisivamente na avaliação plurianual dos investimentos
em infraestruturas mais vulneráveis à rebelião dos elementos naturais. Suster a
degradação de infraestruturas aumenta a sua resistência mesmo que os erros de
ordenamento sejam em parte irreversíveis. O Algarve estará muito provavelmente
nesta fase. O ciclo de infraestruturas que deu origem ao ciclo de afirmação
turística estará a enfrentar fortes necessidades de renovação e conservação de
redes.
Há outros casos em que a matriz do problema da
vulnerabilidade aos desmandos naturais é claramente a dos erros de ordenamento.
Os poderes públicos não foram suficientemente convincentes, antes foram
complacentes e cúmplices dos desmandos de investimento privado, não colocando
entraves à desregrada ocupação do território e à desmedida impermeabilização do
solo. A reversibilidade destas situações é possível, sobretudo se for produzida
evidência de que a lei não foi respeitada. Mas trata-se de situações que
tenderão a colocar a nu as cumplicidades de entidades públicas locais e
setoriais, adivinhando-se nessas situações um longo imbróglio jurídico e uma
forte incomodidade política, embora muitos dos protagonistas tenham já saído de
cena.
Mas há uma outra tipologia de situações que as recentes
inundações e devastação em Albufeira exemplificam claramente. Há vulnerabilidades
aos desmandos dos elementos naturais (demoníacos segundo o mais recente
ministro da Administração Interna, Calvão Silva, que ou muito me engano uma
permanência prolongada no governo nos traria bastante matéria de comentário)
que são provocadas simplesmente por mau investimento público. O caso do projeto
POLIS em Albufeira com infraestruturas realizadas aprisionando uma ribeira é
inequivocamente um caso de mau investimento público. Um resquício de um tempo
em que a euforia da infraestrutura se sobrepunha a qualquer outro tipo de
racionalidade ou defesa de outros recursos. É óbvio que poderia ter escapado
incólume, valendo sobretudo a lápide de inauguração e o espaço público
reconstruído. Mas é nestes casos que o investimento deve ser exemplar e produzir
efeito de demonstração sobre o investimento privado.
Será interessante observar como é que a situação será
reposta, cavalgando o erro ou emendando a mão e procurando uma outra
convivência com o elemento natural, neste caso a ribeira. Recordo-me que em
férias já longínquas na Costa Brava da Catalunha presenciei em aglomerados não
propriamente pouco densos de edificação um respeito muito grande pelas ribeiras
de escoamento para o mar das águas pirenaicas. Algumas dessas ribeiras dão
acolhimento a estacionamento de veículos, sem qualquer impermeabilização, mas
sujeitas a alertas sonoros e de vigilantes humanos de possíveis enxurradas tão
típicas do verão catalão.
Por agora a euforia das infraestruturas parece estar
contida e o desafio será o do ciclo da renovação e manutenção. E, por outro
lado, há uma coisa chamada de mudanças climáticas, uma outra palavra para
instabilidade natural, que os nossos projetistas deveriam começar a
internalizar na sua criatividade de projeto.
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