(Uma
utopia?)
Um grupo de economistas, transformado em manifesto
aberto, acolhidos pelo Center for
Economic Policy Research (CEPR), um think-tank
bastante ouvido em Bruxelas, acaba de lançar um processo curiosamente designado
de Rebooting the Eurozone, organizado
em etapas analíticas, a primeira das quais passa pelo estabelecimento de um
consenso sobre a narrativa da crise (ver paper aqui). O grupo é desigual, mas globalmente é um
manifesto forte que tem entre os seus fundadores economistas representativos
como Robert Baldwin, Olivier Blanchard, Paul de Grauwe, Daniel Gros e
Christopher Pissarides. O tema é relevante pois a narrativa da crise entretanto
consensualizada ajuda a situar o pedido de ajuda lançado por Portugal, não com
o objetivo de branquear os erros de afetação de recursos cometidos por
Portugal, mas para compreender que a situação portuguesa tem também uma dimensão
de crise do euro que a taberneira direita portuguesa teima em ignorar.
Não irei focar-me nos indicadores de vulnerabilidade que
hoje atiram a Europa para uma atomização no pior momento possível, ou seja no
momento em que seria estritamente necessária uma sólida atuação concertada. A dimensão
do desemprego juvenil, a vulnerabilidade do sistema bancário a créditos de
cobrança que já não é duvidosa mas impossível, o círculo vicioso entre a dívida
pública e essa vulnerabilidade bancária constituem elementos suficientemente
consensuais para colocar em evidência que a União Europeia está sobre brasas. O
consenso sobre a narrativa da crise interessa-me mais, sobretudo porque
contrasta com a posição dos fazedores da política económica, que continuam tais
como zombies ou baratas tontas a degladiarem-se sobre essa mesma narrativa.
É importante notar que economistas tão representativos se
tenham posto de acordo em reconhecerem que a crise do euro não é inicialmente
uma crise de dívida, mesmo que tenha evoluído para tal e será importante
compreender por que razão não o era inicialmente e se transformou em crise de dívida.
O grupo de economistas dá por adquirida que a crise do euro constitui uma
daquelas típicas crises de “paragem rápida” (sudden stop) tendo a precedê-la uma antecâmara de avultados fluxos
de capital com origem nos países mais ricos do Norte em direção aos mais pobres
do sul. Ou seja, uma situação típica de desequilíbrio entre países com balanças
correntes excedentárias (não atingidos pela crise) e com balanças deficitárias,
esses sim fortemente penalizados pela rápida interrupção desses movimentos de
capital que acontece quando os investidores internacionais deixam de emprestar
a governos e a bancos. Dito de forma prosaica, a crise do euro é inicialmente
uma crise de balança de pagamentos. Com a interrupção dos fluxos de financiamento
e o impacto sobre os ritmos de crescimento económico, isso fez disparar os défices
públicos em percentagem do PIB, bancos e governos deixaram de poder
financiar-se e com isso emergem as crises de dívida. Mas esta amplificação das
crises de dívida só foi possível porque as fissuras de construção do edifício
do euro precipitou a transformação de uma crise de balança de pagamentos em
crise de dívida. E os economistas chegam a consenso sobre tais fissuras que
ampliaram os riscos do desastre económico: ausência no sistema de um
emprestador de último recurso ou instância; impossibilidade da desvalorização
nominal; relações imbricas entre governos e bancos da zona euro; financiamento
predominantemente bancário e caráter residual dos mercados de capitais como fonte
de financiamento; problemas complementares de competitividade que ampliaram o
efeito correção por via de quedas abruptas de produto.
Mas o que é mais surpreendente é que os economistas do
manifesto chegam também a acordo sobre a efetiva presença de uma péssima gestão
macroeconómica da crise, incapaz de reunir num só modo de abordagem os
interesses de credores e de devedores. Embora não totalmente explícito no texto
do manifesto, presume-se que essa má gestão macroeconómica da crise é simultaneamente
um problema de crise de personalidades (ou seja um abismo entre os académicos
reticentes e os practitioners da
macroeconomia) e de falência institucional grave do edifício europeu.
As consequências políticas de um manifesto desta
envergadura são várias e não têm todas os mesmos destinatários. Primeiro, por não
se tratar inicialmente de uma crise de dívida e antes de balança de pagamentos,
isso significa que as inconsequentes políticas de austeridade focadas na redução
da dívida, sem resultados como no caso português, foram tontas e
ideologicamente determinadas pela fobia inflacionária alemã, sobretudo depois
de ter colocado a salvo os seus bancos mais expostos. Ou seja, a penosidade
imposta a alguns países não tem qualquer cobertura de teoria macroeconómica. Segundo,
face aos não desenvolvimentos na estrutura do edifício europeu e mantendo-se o
desequilíbrio crónico entre países excedentários e deficitários nas suas contas
correntes externas, a vulnerabilidade atual é total e leviana a sua ocultação. Terceiro,
a manutenção do grupo de excedentários e de deficitários, provocada pela falta
de reconhecimento por parte dos excedentários que são também parte do problema
e por isso têm de contribuir para a sua solução e pela incapacidade de
minimização pelo menos parcial dos seus problemas estruturais de
competitividade por parte dos deficitários, agrava irreversivelmente a
vulnerabilidade invocada no ponto segundo.
Será que um consenso desta natureza em torno da narrativa
da crise penetrará os que têm uma perspetiva taberneira destes problemas? Não
estou convicto dessa possibilidade. O que significa que fazendo nós parte do grupo
dos que permanecem deficitários o reatar do acesso ao financiamento é apenas
uma aspirina. Os problemas centrais estão lá. Conviria por isso rebentar com a
retórica das reformas estruturais tais como elas foram concebidas pelo discurso
da treta comunitária para agarrar o touro pelos cornos no que diz respeito aos
fatores de competitividade. E um governo de esquerda não pode ficar à margem
dessas preocupações.
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