O politicamente correto tem predominado no coro de
reações ao desaparecimento de Hugo Chávez em luta desigual contra um cancro bem
mais poderoso que o ego e determinação do Comandante, herdeiro autoproclamado
do legado independentista de Simón Bolívar.
A sua proximidade a Portugal, o interesse venezuelano por
alguns negócios e produtos portugueses e sobretudo a dimensão da comunidade
portuguesa na Venezuela sempre determinaram especiais cuidados da diplomacia
portuguesa em tratar o fenómeno Chávez. O mesmo se passou com as reações à sua
morte, compreensivelmente.
Mas a personalidade e o fenómeno Chávez exigem mais do
que o politicamente correto. Não entendo o fenómeno Chávez, como muitos o
fazem, como uma derradeira tentativa de revigoramento de um certo marxismo
revolucionário.
A melhor forma de o compreender é focar a nossa atenção
no contraste violento que o dia de hoje nos trouxe com o povo mais
desfavorecido da Venezuela a chorar o Comandante e a colónia venezuelana da
Flórida nos Estados Unidos a festejar ruidosamente a sua morte. Neste contraste
está a meu ver a raiz de um entendimento não politicamente correto.
Há uns anos tive oportunidade de privar com elementos de
ascendência portuguesa da classe alta, instruída e internacionalizada
venezuelana. Fiquei na altura impressionado com o rancor, diria mesmo ódio, com
que algumas observações sobre a personalidade e o poder de Chávez foram
realizadas. E creio que essas observações eram genuínas. É que a ascensão de
Chávez atingiu efetivamente os percentis superiores da sociedade venezuelana,
ao mesmo tempo que utilizava a capacidade de arrecadação fiscal do petróleo
como fator de redistribuição de rendimento e garantia de um mínimo de dignidade
a uma vasta franja de população, desde estratos de população indígena até aos
grupos mais desfavorecidos e desprotegidos já implantados nas grandes cidades.
Afinal, nem politicamente correto à esquerda, nem à
direita, posso dizer que Chávez protagonizava um modelo populista, de pendor simultaneamente
autoritário e visionário, que sempre enfrentaria o problema do potencial
esgotamento do caráter distributivo associado à captura para esse efeito das
rendas petrolífera. Não era propriamente um modelo de democracia virtuosa e na
imprensa internacional discutia-se se o seu ego do tamanho da América Latina não
terá comprometido irreversivelmente a sua luta atempada contra a doença.
Mas o fenómeno Chaves tem de ser compreendido à luz das
condições socioeconómicas de países como a Venezuela, em que as sucessivas transformações
do modelo económico tenderam a agravar o fosso intransponível entre as elites
internacionalizadas e possidentes e uma vasta população empobrecida,
marginalizada, seja nos campos, seja nas cidades. A revolução bolivariana de
que Chávez tanto se orgulhava não era apenas um slogan visionário, com uma
dimensão fortemente antiamericana. A população mais desfavorecida e
marginalizada sentiu-a e as elites também, embora em termos opostos e daí a
polarização das reações à sua morte. A ascensão de Chávez tem assim as suas raízes
no carácter não inclusivo e reduzidamente redistributivo que o modelo económico
venezuelano potenciou. Deixará marcas na América Latina. Saber se a revolução “bolivariana”
persistirá sem a personalidade de Chávez a liderá-la é outra questão para
acompanhar nos próximos tempos.
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