quinta-feira, 28 de novembro de 2013

BECKETT POR CARINHAS, EMÍLIA E OUTROS MAIS


Prossegue sem cedências o trabalho de qualidade no Teatro Nacional de São João (TNSJ) do Porto. Agora em cena, uma peça perturbadora do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, "Ah, os dias felizes", encenada pelo diretor artístico Nuno Carinhas. Onde a palavra é toda de Emília Silvestre encarnando Winnie – “uma mulher que está numa situação extrema e que continua a acreditar no amor, a lutar contra o tempo e a ocupar o espaço com a linguagem” – no “espetáculo mais difícil" que disse ter feito até hoje. 

A atriz passa o primeiro ato enterrada até à cintura no alto de um monte, enquanto no segundo já só é possível ver a sua cabeça. Mas falando, falando sempre com um discurso falsamente positivo e natural – “mais um dia feliz com o sol a brilhar” – acompanhado de gestos simbolizando a realização das suas rotinas diárias. Escreveu Carinhas: “A tagarelice dela é um esforço de preencher ou deter o tempo. Sempre que tenta repousar, não consegue. Há uma condenação não só à sua condição física como também à perpetuidade da efabulação e da verbalização, como se o silêncio representasse aquilo que vem a seguir.” 

E mais interrogações não deveriam ser permitidas, embora o recurso ao excelente “Manual de Leitura” que é gratuitamente distribuído antes do espetáculo possa ajudar a esclarecer e contextualizar tudo o que ainda se possa ter a expectativa de o ser. Porque aquela mulher que resiste ao tempo agindo “apesar das suas circunstâncias” – um “enigmático estado de desespero, entre a paralisia e a solidão com vista para a morte, com um apagado marido a seu lado” – apenas reflete “a ideia de optimismo levada ao extremo”, desvendando “uma metáfora de surpreendente fertilidade, capaz de dar conta tanto da condição humana como do jogo da representação teatral ou de uma civilização devastada”. 

Não resisto, todavia, a concluir este apontamento citando o parágrafo final da crónica de um apaixonado das artes cénicas, Nicolau do Vale Pais, no “Jornal de Negócios”. Assim: “Depois de Beckett, havemos de voltar ao ioga, ao Passos e ao Silva, mas com uma pequena diferença; sabemos que há momentos estruturados em que essas evidências, facilmente decifráveis, se reduzem à importância que têm: nenhuma. O Teatro inscreve-se sempre no lado mais civilizado da História, onde só se correm riscos por razões mais nobres do que a infame venalidade; a mediocridade dos poderzecos moribundos, alimentados pelo ventilador artificial dos media, desfaz-se em átomos irrelevantes, ao subir da cortina. "Dançar primeiro, pensar depois; é a ordem natural" dizia Beckett em ‘À espera de Godot’. Em Teatro, o credor da dívida impossível é o prazer que não tivemos.” Valeu!

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