Não tinha qualquer intenção de voltar ao tema da
iniciativa de Mário Soares, pelas razões aduzidas no meu último post. Mas a centralidade que o tema
assumiu no Quadratura do Círculo de ontem, a coincidência da ocorrência simultânea
dos principais discursos da iniciativa com o episódio das escadas da Assembleia
da República e o teor que se foi conhecendo de algumas intervenções levam-me a
quebrar o programa editorial que tinha previsto para hoje.
É bastante irónico e sintomático do que se vai passando
na sociedade portuguesa o facto de José Pacheco Pereira ter sido o centro das
atenções da reunião, pelo menos a fazer fé no que os jornais (alguns) comunicaram
sobre o assunto. De facto, do ponto de vista da ação para a construção de uma alternativa
de governação à atual maioria, dificilmente se poderiam encontrar pontos de
consenso entre JPP e a maioria dos presentes na reunião. Mas a forma como JPP
se dirige aos presentes, Amigos, Companheiros e Camaradas, é por si só um
documento para a história recente. E certamente a maioria dos que animou a
iniciativa não mudou substancialmente os seus vícios e virtudes. O que
simplesmente mudou foi o contexto do país e da governação e as escolhas necessárias
transformam o alcance e amplitude dos consensos, tema a tema.
António Lobo Xavier, que teve, pour cause, uma noite encolhida no
Quadratura deu o mote e António Costa pegou nele, zurzindo em torno duma
interpretação do alcance da iniciativa de Soares que vale a pena seguir com
atenção no futuro próximo. A necessidade do encontro e a movimentação de Soares
justificar-se-iam entre outras coisas pelo vazio que as posições do PS têm
instalado no espaço de perceção das alternativas à atual governação. Se JPP não
tem receio de expor em público a forma como abomina a atual direção do PSD e o
que ela representa em relação ao ideário social-democrata de que JPP se
considera um elemento de grupo em extinção (a distinção entre o pestífero e o não
pestífero é violenta), Costa não hesita também em evidenciar a sua perplexidade
por tão reduzida representação do PS na ocupação do espaço da palavra na
iniciativa. E lá se vai cavando em torno de António José Seguro uma ladeira tal
que a construção de espaços de entendimento para a construção da alternativa de
governação vai-se estreitando para o líder do PS.
O outro tema que suscitou a minha atenção foi o
da invocação dos riscos da violência social como elemento de demonstração da inépcia
governativa. Com a sua elegância de raciocínio habitual, Vasco Lourenço prometeu
mesmo correr com os ditos à paulada se necessário.
Não desvalorizo os riscos da conflitualidade
social violenta, mas não lhe atribuo a importância que, por exemplo, Mário
Soares lhe atribui. Reconheço que uma dessas violências mais larvares pode
acontecer nas forças de segurança e o efeito dinâmico de eventuais confrontos
entre pessoal em funções de segurança ativa e pessoal em protesto pode ser
destrutivo das condições mínimas de um estado de direito.
A minha explicação para não lhe atribuir a importância
que Soares lhe atribui prende-se com o facto de, em meu entender, estarem a ser
produzidos efeitos negativos dinâmicos provocados pelo modo como o atual
governo aplica a austeridade bem mais gravosos do que a conflitualidade social,
mesmo que violenta. Cito dois desses efeitos dinâmicos negativos que me têm
ocupado atenção e reflexão. O primeiro é o da destruição da confiança entre
governo (como representante presente do Estado) e os cidadãos. A democracia e
uma sociedade de contratos não funcionam sem confiança entre os seus principais
agentes. O minar dessa confiança é destrutivo, corrosivo das instituições e
essa confiança faltará quando o desenvolvimento da economia o exigir. O segundo
é o dos incentivos perversos a que a situação está a conduzir os indivíduos e
as famílias. Lembro por exemplo os incentivos à formação privada de capital humano
e aos investimentos dos indivíduos e das famílias em educação. A sociedade
portuguesa estava a despertar de uma letargia penalizadora do valor social da
educação e começava a mudar comportamentos nesta matéria em função do retorno
que a educação proporcionava às famílias e aos indivíduos. Todos os sinais
apontam para que as famílias estejam a interromper essa viragem decisiva na
sociedade portuguesa. Um bom exemplo deste desconchavo de sinais e incentivos é
dado pelo inconcebível Crato que no seu ministério consegue esta proeza:
legislar sobre provas a professores que colocam, na prática, nas ruas da
amargura a formação superior que ele próprio acolhe e financia nas
universidades e politécnicos públicos.
Ora estes efeitos são bem mais perniciosos do que
os riscos da conflitualidade social violenta e seria bom que as personalidades
presentes na Aula Magna fossem neles pensando para os contrariar haja espaço
para uma alternativa de governação.
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