A pergunta que anda no ar é seguramente a de
“Você já leu o guião da reforma do Estado?”. Também eu não me atrevi a
responder pela negativa a esta pergunta e lá arranjei uma aberta para percorrer
o guião de letra gorda e espaços generosos. Tenho uma grande experiência de
coordenar relatórios em cuja escrita de suporte intervém muita gente e por isso
apreendo quase instintivamente se o texto reflete uma posição coletiva
amplamente discutida ou se, pelo contrário, é o resultado de colagens, corta e
coze ou simplesmente um agrupamento de última hora de contributos diversos não
elaborados segundo um guião prévio. As minhas expectativas eram baixas e tinham
razão para o ser. A maioria teve tempo de sobra para mostrar ao que vinha em matéria
de papel e peso do Estado na sociedade portuguesa. E arrancou sem qualquer
pudor com um modelo de sociedade na cabeça, em grande parte fruto de ideias e
práticas concretizadas por esse mundo fora que já demonstraram em avaliação de
resultados que estão longe de corresponder às bondosas intenções de alguns dos
seus defensores. E sobretudo fê-lo não o apresentando de forma clara e
transparente ao escrutínio dos portugueses. Por isso, a maioria compreendeu que
precipitar um memorando de entendimento era a via mais direta e sob pressão que
bastasse para fazer passar tais ideias não escrutinadas. Daí, por exemplo, o
facto do modelo de revisão constitucional com que sobretudo o PSD abriu as
hostilidades no início da governação ter sido rapidamente metido no saco, pois
o governo percebeu que era mais seguro abrigar-se na inevitabilidade do ter de
ser que o memorando implicava do que aventurar-se em grandes discussões
doutrinárias.
Mas mesmo reconhecendo que o guião “Melhor
Estado” é um documento paradoxalmente elaborado sem um guião condutor capaz de
homogeneizar contributos diversos, as minhas baixas expectativas não deixam de
se agitar quando, reunindo leituras de fim-de-semana, me confronto com
interpretações tão diversas entre si, e não apenas em questões de pormenor, mas
antes sobre o alcance e conteúdo globais do documento. Não estou a falar das
reações oficiais partidárias, pois essas estão de tal maneira cristalizadas que
as podemos antecipar sem qualquer dificuldade. É de facto penoso o tempo de
antena perdido com posições perfeitamente antecipáveis e só de facto um
Presidente da República cinzento e falho de golpes de asa não compreende que
por essa via não consegue qualquer progresso e que, por isso, é crucial
desbloquear a situação se não quisermos que ela apodreça e se desintegre de
vez. Mas do ponto de vista dos comentários e opiniões de quem acede à
comunicação social, o guião “Melhor Estado” consegue surpreendentemente agitar
as águas, pois não queria acreditar mas em função do que li não imaginaria
tanta diversidade contraditória de apreciações. Vale a pena explicitar algumas
delas, pois o debate está aí, embora sem espaço político-institucional para o
transformar em matéria útil de concretização política.
Pacheco Pereira e Vasco Pulido Valente arrasam o
documento. O primeiro designa-o de “documento pomposo, mistificador e
assustadoramente vazio”, (…) “medíocre compilação de lugares comuns, soluções
contraditórias e formulações vagas e vazias”, num título sinistro de “manual
para ler o vazio”. O segundo permanece em registo similar, falando de um guião “escrito
numa prosa oca e burocrática, não passa de uma série de lugares-comuns. Por que
ninguém no seu juízo jamais se interessará”, (…) embora Paulo Portas se tenha esforçado
por o enchumaçar, mandando usar uma letra grande e pôr muito espaço entre cada
uma das divisões da coisa”. Já Daniel Bessa, provavelmente objeto de alguma
revelação divina, acha que o documento é “uma boa surpresa, muito acima do mínimo
que sempre constituiria, (…) com princípio, meio e fim, escrito num português
claro, frequentemente assertivo”. Em registo similar, Nicolau Santos
considera-o um “excelente pontapé de saída para esse debate” (o da reforma do
Estado entenda-se). Ainda no registo do Expresso, Martim Avillez Figueiredo e
Pedro Adão e Silva têm leituras curiosas e dissonantes relativamente ao coro de
quem arrasa o documento e de quem o defende. O primeiro joga nas contradições
do pensamento de que a maioria se arvora defensora. Tão liberal nas ideias e tão
pouco consequente em demonstrar que o Estado pode ser reduzido. Um documento
com conteúdo tão irrelevante como este seria segundo o cronista a melhor
demonstração da atual inutilidade do Estado. A tese de Pedro Adão e Silva é
talvez a mais sugestiva, construída em torno da ideia do Estado paralelo: “o
mesmo Governo que prometeu combater o Estado paralelo criar um universo de
mercados, dependentes do Orçamento de Estado, que passaria a prestar serviços
até aqui assegurados pelo Estado”. Pedro Adão e Silva tem em razão em denunciar
a falta de transparência e de avaliação de resultados de todo esse mundo de
situações extensivas.
Como se depreende do que foi dito, se o debate
interpartidário está cristalizado, não pode dizer-se que o documento não tenha
produzido efeitos nesta matéria. E a razão para tal é que uma coisa é a má qualidade
do documento, outra coisa bem diferente é a inevitabilidade do debate e da própria
reforma do Estado. Espero que o PS na abordagem ao programa eleitoral assuma a
centralidade desse debate e o projete decisivamente num programa de governo.
Será que tem algum significado político a
condescendente apreciação de António Costa ao documento realizada no Quadratura
do Círculo?
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