sábado, 9 de novembro de 2013

SOBRE AS MEMÓRIAS DE BRETTON WOODS



A questão dos excedentes comerciais externos da Alemanha que nas duas últimas semanas ocupou o debate na zona euro, dando origem a uma anunciada iniciativa da Comissão Europeia para análise do eventual excedente excessivo, suscita uma outra questão. A ausência de mecanismos automáticos de estabilização que permitam corrigir a existência prolongada na zona euro de países externamente excedentários e países prolongadamente deficitários vem naturalmente a propósito.
Como é óbvio, a questão adquire um outro contexto quando é observada num espaço económico como a zona euro. Mesmo tendo em conta os perigos de analogias históricas descontextualizadas, o que se passa hoje na zona euro não pode deixar de ser confrontado com o ambiente que se observava então no mundo após a Segunda Guerra Mundial, ou melhor estava ela prestes a dar a vitória aos aliados. O ambiente que precede Bretton Woods e a procura de um modelo de organização da economia mundial pós guerra, do qual a questão do sistema monetário assumia um lugar crucial, colocava aos economistas artífices dos modelos em discussão interrogações muito semelhantes. Um desses artífices, Lord Keynes, sempre lutou afincadamente por não deixar de fora os credores e os países excedentários das soluções obrigatórias para resolver os desequilíbrios geradores de instabilidade na economia mundial. Na sua proposta de organização dos pagamentos internacionais, uma das suas regras preferidas era a de permitir aos países deficitários e devedores a aplicação de medidas discriminatórias para com os países excedentários se estes não dessem mostras de participar na solução.
Aliás é curioso que Keynes o defendeu não só no pós segunda guerra mundial (em que o Reino Unido era o país deficitário e devedor face aos Estados Unidos da América), mas também na gestão económica da paz no pós 1ª Guerra mundial em que Keynes defendeu até à exaustão, com desconfiança de franceses e britânicos, que era fundamental criar condições de recuperação à economia alemã sob pena da economia mundial não estabilizar.
As obras completas (Collected Writings) de Keynes e a fantástica epopeia da sua biografia assinada por Skidelsky tinham aparentemente esgotado toda a vasta matéria dos trabalhos e das negociações que conduziram ao sistema de Bretton Woods. Benn Steil não tem essa opinião e atreve-se com uma nova obra sobre os bastidores de Bretton Woods, The Battle of Breton Woods– John Maynard Keynes, Harry Dexer White and the Making of a New World Order, a discutir novos mistérios daquela fascinante negociação.
No American Prospect, Robert Kuttner tem um excelente artigo que, mais do que uma recensão crítica da obra de Steil, é uma reflexão sobre o que nos conduziu de Bretton Woods até ao impasse atual.
Cito um excerto:
(…) Todavia, a partir do momento em que o dólar deixou de funcionar de facto como moeda global nos anos 70, o sistema tornou-se débil e deflacionário, dando razão póstuma a Keynes. As taxas de câmbio flexíveis que se seguiram ao colapso de Bretton Woods constituíram um substituto instável das taxas fixas (as taxas fixas reportadas ao ouro tinham sido bem piores). O FMI e o Banco Mundial deixaram de ser instrumentos de expansão e passaram a ser garantes de austeridade. Os movimentos de capital especulativos que reapareceram sob os auspícios do laissez-faire nos anos 80 exacerbaram as tendências para as expansões explosivas. O colapso financeiro de 2008 não foi mais do que o ponto de exclamação de todo este processo. O euro, que constitui o equivalente mais próximo de uma moeda transnacional (gerido por um banco central fraco), pôs em evidência os perigos de uma moeda internacional. Em vez de favorecer o crescimento estável, o euro promoveu investimentos especulativos na Europa do Sul nos anos de expansão exigindo depois a austeridade depois do crash. Dado que os propósitos de Keynes tinham algo de utópico e que o sistema de Bretton Woods representou um momento histórico único da supremacia americana que dificilmente se repetirá, qual será hoje o melhor ordenamento monetário? (…).
O desconforto que todos sentimos resulta de uma profunda angústia: onde estão os artífices desse novo ordenamento? Vazio total e profundo.

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