A questão dos excedentes comerciais externos da
Alemanha que nas duas últimas semanas ocupou o debate na zona euro, dando origem
a uma anunciada iniciativa da Comissão Europeia para análise do eventual excedente
excessivo, suscita uma outra questão. A ausência de mecanismos automáticos de
estabilização que permitam corrigir a existência prolongada na zona euro de países
externamente excedentários e países prolongadamente deficitários vem
naturalmente a propósito.
Como é óbvio, a questão adquire um outro contexto
quando é observada num espaço económico como a zona euro. Mesmo tendo em conta
os perigos de analogias históricas descontextualizadas, o que se passa hoje na
zona euro não pode deixar de ser confrontado com o ambiente que se observava
então no mundo após a Segunda Guerra Mundial, ou melhor estava ela prestes a
dar a vitória aos aliados. O ambiente que precede Bretton Woods e a procura de um modelo de organização da economia
mundial pós guerra, do qual a questão do sistema monetário assumia um lugar
crucial, colocava aos economistas artífices dos modelos em discussão interrogações
muito semelhantes. Um desses artífices, Lord Keynes, sempre lutou afincadamente
por não deixar de fora os credores e os países excedentários das soluções
obrigatórias para resolver os desequilíbrios geradores de instabilidade na
economia mundial. Na sua proposta de organização dos pagamentos internacionais,
uma das suas regras preferidas era a de permitir aos países deficitários e
devedores a aplicação de medidas discriminatórias para com os países excedentários
se estes não dessem mostras de participar na solução.
Aliás é curioso que Keynes o defendeu não só no pós
segunda guerra mundial (em que o Reino Unido era o país deficitário e devedor
face aos Estados Unidos da América), mas também na gestão económica da paz no pós
1ª Guerra mundial em que Keynes defendeu até à exaustão, com desconfiança de
franceses e britânicos, que era fundamental criar condições de recuperação à
economia alemã sob pena da economia mundial não estabilizar.
As obras completas (Collected Writings) de Keynes e a fantástica epopeia da sua
biografia assinada por Skidelsky tinham aparentemente esgotado toda a vasta matéria
dos trabalhos e das negociações que conduziram ao sistema de Bretton Woods. Benn
Steil não tem essa opinião e atreve-se com uma nova obra sobre os bastidores de
Bretton Woods, The Battle of Breton Woods– John Maynard Keynes, Harry Dexer White and the Making of a New World Order,
a discutir novos mistérios daquela fascinante negociação.
No American Prospect, Robert Kuttner tem um excelente artigo que, mais do que uma
recensão crítica da obra de Steil, é uma reflexão sobre o que nos conduziu de
Bretton Woods até ao impasse atual.
Cito um excerto:
“(…) Todavia,
a partir do momento em que o dólar deixou de funcionar de facto como moeda
global nos anos 70, o sistema tornou-se débil e deflacionário, dando razão póstuma
a Keynes. As taxas de câmbio flexíveis que se seguiram ao colapso de Bretton
Woods constituíram um substituto instável das taxas fixas (as taxas fixas
reportadas ao ouro tinham sido bem piores). O FMI e o Banco Mundial deixaram de
ser instrumentos de expansão e passaram a ser garantes de austeridade. Os
movimentos de capital especulativos que reapareceram sob os auspícios do laissez-faire
nos anos 80 exacerbaram as tendências para as expansões explosivas. O colapso
financeiro de 2008 não foi mais do que o ponto de exclamação de todo este
processo. O euro, que constitui o equivalente mais próximo de uma moeda
transnacional (gerido por um banco central fraco), pôs em evidência os perigos
de uma moeda internacional. Em vez de favorecer o crescimento estável, o euro
promoveu investimentos especulativos na Europa do Sul nos anos de expansão
exigindo depois a austeridade depois do crash. Dado que os propósitos de Keynes
tinham algo de utópico e que o sistema de Bretton Woods representou um momento
histórico único da supremacia americana que dificilmente se repetirá, qual será
hoje o melhor ordenamento monetário? (…).
O desconforto que todos sentimos resulta de uma
profunda angústia: onde estão os artífices desse novo ordenamento? Vazio total
e profundo.
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