(Se a cena
política em Portugal pode considerar-se agitada, então o que dizer do que se
antevê em Espanha)
Rajoy dissolveu as Cortes e com esse ato oficial lançou
irreversivelmente a realização de eleições para 20 de dezembro, data em si
controversa, representando um prolongamento só explicável pela tentativa
desesperada do governo do PP em fazer sobressair a evolução favorável da
conjuntura macroeconómica espanhola. Rajoy joga sobretudo no comparativamente
elevado ritmo de crescimento espanhol no conjunto dos países da OCDE e na mais
elevada tolerância da sociedade espanhola para elevadas taxas de desemprego. O
efeito psicológico da descida da taxa de desemprego impulsionada pelo referido
crescimento económico tenderá a predominar segundo Rajoy sobre a memória e
efeitos sociais da austeridade e as ainda elevadas taxas de desemprego apesar
da melhoria observada nestas últimas.
Mas os efeitos desta decisão não podem ser compreendidos
como um ato normal na democracia espanhola. É que a dissolução das Cortes, com
os respetivos e compreensíveis mecanismos constitucionais de segurança e
proteção da democracia e do Estado de Direito vão enfrentar grossa turbulência
provocada pelo que alguns constitucionalistas de Madrid consideram um risco de
verdadeira rebelião anticonstitucional – o início de um processo de
“desconexão” da Catalunha do estado espanhol.
As eleições de 27 de setembro de 2015 deram a vitória e
maioria absoluta parlamentar ao conjunto algo inesperado de três forças
políticas: o Junts pel si, coligação entre a Esquerda Republicana e a
Convergência e o complemento necessário para a maioria absoluta formado pela
formação também independentista mas também anticapitalista do CUP. Embora estas
eleições tenham sido plebiscitárias, isto é, os propósitos independentistas não
foram ocultados, é muito discutível que os seus resultados possam ser
interpretados e assumidos como um referendo positivo à independência da
Catalunha. É verdade que a pressão nacional e internacional sobre os
independentistas foi fortíssima, com todo o tipo de argumentos ameaçadores e
catastrofistas. Mas o que as eleições deram efetivamente foi a fratura talvez
irreversível da sociedade catalã entre os que querem a independência e as que
não a querem. A maioria para a independência nem de longe pode ser considerada
uma base democrática sólida para o respaldo da independência. E nesta
radicalização, como seria previsível, a voz dos que desejam uma maior autonomia
e não a tal desconexão do estado espanhol mergulhou nas trevas. Um indicador
dessa fragilidade é dado pela inexistência ainda hoje de acordo para a formação
de um governo regional que saia das eleições e a investidura de Artur Mas (CiU)
não está ainda assegurada.
Pois ontem, numa deriva independentista que estava anunciada,
o parlamento catalão, hoje presidido por uma independentista de sete costados, Carme
Forcadell, aprovou uma declaração para o início de um Estado catalão
independente sob a forma de república, uma espécie de ajuste de contas com a
história e tentativa de reposição do que já existiu. O El País fala hoje em
editorial de golpe sobre o Estado e de vazio de governo. E tem razão, pois o
prolongamento da data eleitoral por razões meramente instrumentais de cálculo
político, apesar das proteções constitucionais, apanha o Estado espanhol numa
espécie de gestão e é imprevisível o que a deriva independentista pode provocar
nos próximos tempos.
Rajoy, instado pelo PSOE e pelo maior partido da oposição
na Catalunha, o Ciudadanos, de raiz e emergência catalã, diga-se, a preparar
uma resposta concertada de defesa da unidade do estado espanhol, limitou-se a
dizer que seria a Constituição a base de uma eventual intervenção tornada
necessária pela concretização futura da decisão de ontem do parlamento catalão.
Rajoy, mergulhado na sua perspetiva instrumental de utilização do quadro
macroeconómico para defender a pele da governação, nunca deu mostras de saber
lidar com a questão catalã e daí o seu afundamento eleitoral no dia 27 de
setembro. É também discutível que a deriva independentista seja propensa a
negociações, pois está neste momento sobreradicalizada. É espantoso como uma
formação nacionalista e burguesa como a CiU de Mas e outras heranças como a dos
Pujol esteja hoje em radicalização absoluta. Essa radicalização só pode ser
compreendida como fuga desesperada para a frente. A CiU está hoje ameaçada por
processos de corrupção que vão surgindo como cartas de mágico desajeitado e a
família Pujol está hoje a ser investigada como uma família fraudulenta e não
são antecipáveis todos os efeitos a que a investigação irá conduzir.
No meio desta deriva para o descalabro, o Podemos,
imagine-se, embora em queda como agrupamento, tem ficado à margem desta deriva
mais interessado em denunciar a corrupção da CiU e a inépcia do PP, hoje um
partido irrelevante na Catalunha, com a burguesia esclarecida do Ciudadanos a
ocupar o seu estado.
Não se sabe o que Rajoy quer dizer com a afirmação de que
os independentistas terão pela frente a lei e um governo disposto a fazê-la
respeitar, embora com as Cortes dissolvidas e um núcleo permanente em funções.
Vai ser curioso ver se o instrumentalismo de Rajoy face à melhoria do quadro
económico vai ser suficiente para contrariar a subida do PSOE e do CIUDADANOS
que, sendo tão firmes na defesa da não independência como o PP, têm posições
mais flexíveis e constitucionais para acomodar a autonomia catalã. A
radicalização faz temer o pior, pois o parlamento catalão é hoje o epicentro de
toda a trajetória para a independência, sem governo regional investido.
Hoje, talvez acossado pelos acontecimentos, Rajoy aceitou
pactar com o líder do PSOE uma posição de cooperação institucional para
combater e admite fazê-lo também com o CIUDADANOS. Entretanto, um mero
expediente parlamentar urdido pelo PP, Ciudadanos e OS Catalão diferiu no tempo
a aprovação da declaração para o início de constituição da Catalunha
independente sob a forma de República.
Os tempos estão nebulosos para o instrumentalismo do PP e
para o acossamento de Mas e da CiU. Uma boa saída para isto seria a
clarificação do tempo com Rajoy fora da rota e Mas em fuga para curar as
feridas da corrupção. Talvez aí se respirasse melhor e uma sensação de alívio
passasse pelos catalães. E o Barça não teria necessidade de jogar em França.
Mas sem querer brincar com coisas sérias não consigo
antever algo que não seja trágico nesta deriva fraturante da sociedade catalã.
Será que a idade começa a pesar?
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